8.4.08

ONTEM, HOJE E AMANHÃ

Há quase sete meses num negreiro de marés térreas, navego cada vez mais com os olhos fechados, singro por territórios desconhecidos e não vejo modo de descobrir a mina. Toda a vida a desbravar territórios, árvores enormes cortadas pela raiz, mato, a resina a servir de alimento. Passo a explicar: houve um tempo em que a fome fazia-se ao mar, os homens juntavam-se à volta de um leme, partiam as ondas e penetravam no desconhecido com aquela coragem apenas reconhecível nos necessitados. Os necessitados são sempre os mais corajosos. Esses homens contavam as estrelas, olhavam o sol nascer contra as velas, mergulhavam com o luar no canto das sereias. Alguns escreviam crónicas, outros poemas, outros escreviam ainda cicatrizes. Esse tempo passou. Tudo o que almejamos pode hoje ser dedutível nos impostos que a consciência paga, pelo menos em quem ainda não penhorou a consciência. Reconheço que a miséria tem tido um sucesso danado, pelo que não é de admirar que os homens penhorem a consciência. O que temos hoje são negreiros térreos. Os chicotes abrem feridas na moral, os grilhões são invisíveis, a fome disfarça-se com mensagens sms, dvds alugados ao fim-de-semana, uma ida ao restaurante de quando em vez. Mas esta fome disfarçada tem uma agravante na magreza, ainda que não ponha a claro as ossadas, ainda que esconda o esqueleto por debaixo da carne massajada pelo osteopata do bairro. Esta fome tem um preço que não se entende pela morte, um preço labiríntico, porque nos acena como um sorriso de uma criança. No fundo, é uma fome cheia de simpatias. E a gente entrega-se a ela cheios de esperança, sabendo de antemão que a esperança não só será a primeira a morrer como, antes que morra, suicidar-nos-á mais um pouco. Isso mesmo. É esse o tempo verbal exacto da esperança. Há quase sete meses num negreiro de marés térreas, chegou o momento de dizer basta. E preparar a vingança. Vou, por isso, reclamar os meus direitos numa falésia, sentar-me à beira do abismo a olhar gaivotas e pequenas embarcações e filhos do mar e marés inconstantes. Irei rescindir com um sorriso nos lábios, voltar à luz miserável da incerteza e deixar-me espoliar com o prazer de quem se predispõe para a guerra. Não tenho mais nada a fazer aqui. Saltarei do negreiro térreo para um mar revoltoso, deixar-me-ei levar como um náufrago, como um rolha de cortiça dançando na ondulação das horas. Gostei, lindo, muito bom, parabéns, venhas de onde vieres aprenderás a rezar o terço vazio dos elogios inócuos: porque eu já sei que para cada conta há um troco e que para cada revelação há um mistério.