INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #30
VOU DANÇAR TEU FUNANÁ
Preso, Gabriel Dias Ferreira, cónego da Sé
de Ribeira Grande, foi acusado de cópulas
sodomíticas com mais de oitenta jovens
negros na sua maioria. De 1650 até hoje
passou-se apenas do encarceramento à multa.
Coisa morna. É como passar duma tabanca
para um funaná. O espírito do inquisidor
Pedro Castilho continua saltitando por ali
e por aqui, ainda hoje
há um escravo
no meio de dezenas, no meio de milhares,
e milhares no centro de milhões.
Junto os joelhos, cruzo os braços e suspiro.
Sentado na cadeira, olhando o tecto, chego
ao céu, atravesso o infinito – ou se quiseres:
a alma da morte – aportando no rasto
da tua última vida. Coloco os cotovelos
sobre a mesa e as mãos espremem
as faces. Fecho os olhos
e o tempo é
um corpo de mil corpos
no centro de milhões de homens mortos
duma lista – bem maior que a das compras
dum qualquer cidadão civilizado, mas
enfezado de gestos solidários – infindável
de pestes. É melhor tomares nota
por causa da amnésia:
2 Kg de Cólera, cinco de Tuberculose.
Dez de Sida e meio quilo de Malária.
1 quilo de Tétano e outro de Pneumonia.
Mais um de Diarreia, Diabetes, Sarampo.
Duzentos gramas de Lepra, um pezinho
de Raiva e um repolho de Paralisia.
Um pacote de Fome
e meia dúzia de garrafas de sede.
Seca o olhar com a idade quando
o vento se transforma em chumbo.
Abro os olhos e a tipa lá do décimo andar
cuspindo para me culpar a mim, não a ela.
Que do seu prato tira sempre um grão
que lança para o mundo todos os dias.
Imóvel, volto a fechar os olhos
na doida ilusão de vir a sentir um bago
seu cair no meu ombro suspenso
na estúpida espera. Se fossemos
pela caridade nunca
tínhamos chegado à lua.
Sinto algo a cair e
abro os olhos.
Afinal, é merda de pomba.
Jorge Aguiar Oliveira
1 Comments:
pois, e a tal malfadada tristeza...
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