13.5.08

RESERVAS MORAIS



Sei que já devia ter-me habituado. Sei que se ainda mão me habituei, então o problema é todo meu. Sei que sou inábil nos hábitos. Não consigo. Por mais que me esforce, não consigo. Quem está mal, muda-se. Mas para onde? A Terra é redonda, os homens são quadrados. É como na canção: estou bem onde não estou, quero ir para onde não vou. É como na canção: só inquietação, inquietação, inquietação. A culpa, há sempre uma culpa para muitos culpados, é de Deus nosso Senhor que não tinha nada que me fazer à sua imagem e semelhança. E agora? Crucificado, não morro. Não tenho pinta para isso, estou gordo, ninguém me pode ouvir, enjoo com tanta parábola. Mas vejo, espanto-me ainda (o que prova a minha inexorável inabilidade), “boquiabro” o pasmo, suspiro com um sem rumo já derrotado, fixo-me no absurdo das situações, olho-me ao espelho: eu é que estou mal. Afinal, é tudo uma questão de negócio. A nossa vida, em suma, é um negócio. Comemos a sopa, dão-nos sobremesa; fazemos os TPC, passamos de ano; passamos de ano, dão-nos uma bicicleta; ganhamos a corrida, oferecem-nos uma medalha. E por aí… Mas eu não dou para isto, não sou para isto, não nasci para isto. O que quero aqui declarar, declarar com toda a clareza, é que eu não nasci para viver. Eu nasci para morrer. Sempre que o imposto me vai ao senso, morro; sempre que a impostura me vai ao imposto, morro; sempre que morro, morro mais ainda. Sou um cadáver ambulante, um tiro enganado no disparo, não sou utópico, pessimista, optimista, realista, equilibrado, desequilibrado, nada disso. Sou apenas, como se diz na minha terra, um pobre diabo. Um triste. Isto já nem é uma questão de moral. Não é ética. Não é deontologia. Isto não é bom senso. Isto não é educação, chá com limão, isto não é salubridade. Isto é mesmo uma desgraça. Tudo à minha volta gira como um negócio. E eu, que não dou para o negócio, sinto-me um mono. Os frutos nascem da terra, da terra que tem dono, a gente paga os frutos porque os frutos são embalados, é preciso pagar a quem os transporta, vende e revende, é preciso pagar a quem transporta quem transporta, os frutos saem caros. No entanto, é tudo normal. A água não nasce nas nascentes, nasce nas fontes. Nos poços abertos pelos homens. É preciso pagar aos homens que abrem poços, furam bicas, enchem contentores, baldes, fazem o cimento, constroem as casas. É preciso ganhar dinheiro, vender dinheiro, dar ao dinheiro o gosto do desejo, aquela deificação que se dava aos príncipes e às princesas dos condomínios sagrados. É preciso passar recibos, pagar as contas, estar em dia. É preciso estar em dia com o Estado, o Estado tem que estar à altura da frota, das comitivas, dos particulares. É preciso dar um rosto ao Estado para, pelo menos, podermos desenhar bigodes no estado do rosto. É tudo normal, é tudo natural. A gente diz inveja, a gente diz incúria, corrupção, ligeireza, compadrio, nepotismo, desonra. Falta dizer desonestidade. Já ninguém diz desonestidade porque a honestidade caiu em desuso. O que é honesto hoje é ser-se desonesto e assumi-lo com quase todas as letras, dizendo foi sempre assim, toda a gente faz, há-de ser sempre assim, é natural “em qualquer ramo de actividade”. Não tenho jeito para isto. Como é que se vende um favor? Onde é que se compra a lata? Na secção dos enlatados? Nas conservas? Nas reservas?

3 Comments:

At 3:02 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Não o conheço. Conheço quem o conheça. Dizem-me de si que é um homem bom, sem maldade. Quando me dizem isso de alguém lembro-me sempre daquele personagem interpretado por Gérard Depardieu, François Vatel. A propósito dele se dizia que "alguns homens eram demasiado nobres para fazerem parte da aristocracia".
Seja como for é uma coisa muito bonita para se pensar de alguém.


Alberto Silva

 
At 12:14 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Não o conheço. Conheço quem o conheça. Dizem-me de si que é um homem bom, sem maldade. Quando me dizem isso de alguém lembro-me sempre daquele personagem interpretado por Gérard Depardieu, François Vatel. A propósito dele se dizia que "alguns homens eram demasiado nobres para fazerem parte da aristocracia".
Seja como for é uma coisa muito bonita para se pensar de alguém.


Jorge Melícias

 
At 12:35 da tarde, Blogger hmbf said...

Agradeço os comentários, caríssimo(s) Alberto Jorge Silva Melícias.

 

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