Fragmento #64 – Ruínas
Os quintais da vizinhança, entre os quais está um pequeno pedaço que aparentemente me pertence, vivem o abandono total; a velha do rés-do-chão morreu e aquilo agora é uma verdadeira selva, a trepadeira invade-me a janela do atelier, por vezes tenho de cortá-la para não tapar a luz, para não interferir na luz necessária para pintar; há muito que prometi construir um jardim naquele pedaço, não o fiz, sei agora que nada me pertence e estou de passagem, mesmo quando circulo no mesmo sítio. Cada dia sinto mais que estou de partida, o que me prende é nada e a ideia de construir um jardim não passa de uma boa ideia. Estou triste, nem escrevo, resta-me alguma energia para pintar, procuro outros mundos onde possa habitar, porque o que se passa em meu redor está a perder o sentido. Não entendo quando comecei a sentir-me assim, talvez desde que a pintura me invadiu, ela está a interferir em tudo. Acordo por vezes de madrugada, sem despertador e vou pintar, nunca pensei que a luz da manhã se tornasse tão importante. A Lua segue-me com o seu precioso silêncio. Estive anos enleada e agora preencho espaços com rastros labirínticos, à medida que me liberto apenas me distancio, é como se tudo em meu redor fossem apenas memórias, vidas onde já não estou no momento presente, vidas que não me dizem respeito. Retomei o trabalho e as actividades sociais habituais no início de Setembro, não me preenchem, faço apenas o que pode ser feito para depois poder pintar. Nada me encanta. Sinto que em torno de mim habitam três ruínas que se estão a desmoronar: tentei que duas delas se fortalecessem contra as agressões do meio ambiente, mas não consegui nada, elas agora estão a destruírem-se uma à outra. Quanto à terceira, é muito bela, mas está fechada, queixa-se que eu não faço a mínima ideia do que se passa com o seu corpo e alma. Não me sinto culpada por isso, não sou responsável por uma ruína invisível fechada sobre si própria, não vou arruinar-me por algo que me é exterior, já quase me desmoronei por outras razões, mas depois das obras na casa, sinto que vou ter de habitar outro espaço. Não consegui sequer construir um jardim nos quintais da vizinhança, confesso que me atrai ver aquele pequeno mato no centro da cidade, o jardim era uma boa ideia, mas não o vou construir aqui. Não consigo fazer quase nada onde estou, apenas exorcizar enleios nas telas, vou libertar-me apenas.
Maria João
Maria João
3 Comments:
tornaste-te uma verdadeira pintora, e a tempo inteiro, Maria João...
e não há luz como a matinal...
Olá Luís, obrigada pelo teu comentário. Pintora a tempo inteiro era muito bom, mas nunca consegui viver só da pintura.
Maria joão
assim sim
abraço
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