Fragmento #75 – A cidade dos anjos
Voei para Berlim na semana passada e acho que ainda não aterrei aqui no chão; há muito que desejava as asas desta cidade, talvez desde que vi o filme de Wenders e o destino já me tinha pregado partidas engraçadas em relação a ela. Antes de partir, a amiga que tem sido até agora o pretexto para voar para as terras germânicas avisou-me que Berlim é a cidade dos anjos e que no seu enorme espaço encontramos as mesmas pessoas em sítios totalmente diferentes. Desta vez não foi possível encontrarmo-nos na Alemanha e viajei com o meu amigo, contei-lhe esta história antes de aterrarmos por lá e ele não se esqueceu. Assim que iniciámos os nossos passeios nas ruas de Berlim, ele chamou-me a atenção para os transeuntes que reencontrávamos nos locais mais inesperados; alertou-me, por exemplo, que um grupo no metro, sentado ao pé de nós era o mesmo que estava no aeroporto, quando fomos fumar um cigarro lá fora. Eu não me lembrava deles, nem os reconheci. Antes de entrarmos na Filarmónica, para um concerto memorável, chamou-me a atenção para uma personagem que já tinha visto num outro ponto da cidade, afirmando que se tratava de um anjo. Fiquei um bocado triste, senti que não tinha capacidades para reconhecer anjos, sendo assim despassarada, nem os vejo. Mas nessa noite, após o concerto, fui eu que reparei numa situação insólita: no metro, estávamos os dois de pé, junto à porta no interior de uma carruagem com bancos laterais e vi dois homens sentados frente-a-frente abraçados, impedindo a passagem pelo corredor; algo os unia de tal forma que permaneceram assim sem dar pela paragem da máquina na estação. Os outros passageiros não olhavam para o que se estava a passar, mas eu não conseguia parar de olhar e fiquei de tal modo perturbada, que não tirei a máquina da mala para fazer uma fotografia, apesar de desejar. Quando saímos, o meu amigo chamou-me tonta por não ter coragem de fotografar algo tão belo, achou que eles não se iriam importar, poderia oferecer-lhes depois a fotografia; continuei a espreitar pela janela da carruagem aquele abraço intenso que não se desfazia e disse-lhe que sentia aquele instante como símbolo da reunificação, da queda do muro de Berlim, como uma ressurreição. No dia seguinte, encontrei pela primeira vez um anjo, estava sozinha e ele acenou-me no interior do Museu Judaico dizendo: Don’t you remember? Era um homem que de manhã me tinha ajudado no metro, quando estava a tentar tirar um bilhete na máquina; reparei nele a falar em alemão com outra pessoa na máquina ao lado, porque se virou para mim e explicou-me em inglês que tínhamos de comprar o bilhete num quiosque, as máquinas estavam avariadas. Segui-o e já no quiosque perguntou-me qual era a minha nacionalidade, quando disse portuguesa sorriu com ar simpático, mas não lhe dei conversa. À tarde, no museu, se não acenasse, não o via de certeza e só o reconheci quando falou. Fiquei então com a impressão de que só dou por anjos se falarem comigo, porque tenho sempre a cabeça no ar. A propósito de cabeça no ar, fotografei vários anjos com o céu de Berlim.
Maria João
Maria João
16 Comments:
Adorei a narrativa. senti como se eu também tivesse ido...
Joãozinha!!!
Quero saber tudo.... As imagens, os cheiros, os sabores e principalmente o que se sente....
Aiii!!!
Também queria lá ir. :(
Berlim chama por mim...
Mas os impasses, a falta de dinheiro, os projectos paralelos, a vida... Bolas!!! Não vai ser possível.
Adorava um jantar, para ouvir e saborear toda a história.
Aqui ou ai.
Vamos combinar?
Beijinhos
Um dos textos mais bonitos que aqui escreveste Maria João.
j.
Obrigada, vocês são uns anjos!
Maria João
Angel calls on me set to take me out, angel with no face. the end of the line; beginning of time, a matter of faith. I see all my friends from distance afar on another plane, mourning over me: a sickness of heart - a sense of betrayal. have you seen the twilight close so slow.. (I rose over them so light). men in black suits dressed – cold soft wood and marble silk, to take me away. no heaven or hell. the memory behind lingers on a face.
O teu bonito texto lembrou-me esta letra, a tal que fechará o disco, Last Rite.
Os anjos são tramados ;)
A ver se vou a Berlim.
A ver se, prá próxima, fazes escala em Barcelona. :)
obrigada np e Vitor
Maria João
lindo texto...
também gostava de conhecer Berlim, um dia destes.
já estive na Alemanha, mas no tempo em que elas ainda eram duas, lá para os lados de Colónia.
Obrigada Luis e sempre que quizeres, visita-me no meu novo espaço, será benvindo!
Obrigada Maria João pela cidade dos anjos, que também foi minha nos quase 7 anos que lá vivi, nessas estátuas ladeadas com ceú cinzento, nos bancos laterais de ternos abraços no metro U-Bahn, nos concertos memoráveis da Philharmonie do H. von Karajan, e no Muro, e no que restou dele, e nos bunkers abandonados dos bombardeamentos, e nos quadros nas ruas a dizer "Locais de horror que nunca esqueceremos: Auschwitz, Treblinka, Theresienstadt..."; e toda uma energia única de muito longínquo passado, e um apetecível presente das muitas pessoas em multiculturalidade em tempo real e do cosmopolitismo talvez sem o invólucro tão americanizante, tudo isto iluminado angelicamente da outra luz que o Wim Wenders também encontrou em Lisboa, te deixo com as palavras do Peter Handke, que as escreveu só mesmo para o Céu sob Berlim e para o guião do filme, e que é também aquilo que se pode mesmo sentir ou já se sentiu quem sabe se sob esse céu especial: "Als das Kind, Kind war..."- quando a criança ainda era criança...
Beijinhos e espero que voltes a Berlim
Auf Wiedersehen....
Sofia Lourenço
Maria João, lindo texto, lindas fotos, que me transportaram ao belo site do seu amigo Pedro. Obrigada!
Obriga Sofia e Janaina, apareçam na minha nova casa, serão sempre bem vindas.
Maria João
Ontem encontrei uma antiga aluna da Esc Sec Josefa de Óbidos que me disse que a Maria João Lopes estava no Museu de Berlim. Fiz uma pesquisa e... encontrei um texto magnifico será que encontrei a Maria João Lopes?
Lindas fotos dos anjos de Berlin e excelente reportagem.
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