15.3.09

APRENDER A CONTAR #75

A HORA DECISIVA

Não havia saída para o tédio e as escaramuças continuavam na cidade, dia e noite. A conquista da tranquilidade só era possível através da cobardia: fugir, fechar os olhos, não se preocupar senão com as insignificâncias da vida mais quotidiana. Os donos do poder, fantoches de palha a rebentar de vaidade, esmeravam-se em praticar a solenidade ridícula. Cada dia que passava tornava mais manifesta a ruidosa e mal dissimulada corrupção em que viviam. Como se isto não bastasse, as mulheres amadas ausentavam-se, deixavam de escrever e de telefonar, não se sabia onde procurá-las. Perdido de si mesmo na selva das ruas ou no isolamento do quarto, o herói da novela sentia o chão fugir-lhe debaixo dos pés. Apetecia-lhe desaparecer, ir viver em silêncio, próximo da verdade, até chegar a hora decisiva e definitiva da morte. Continuavam a chamar pelo seu espírito desolado as imponentes cadeias de montanhas do Norte. Na sua solidão, pensava, poderia conhecer enfim a mais pura essência do ser, esse enigma que perseguimos com ardor. Ou seria apenas uma última ilusão?
Ia deitar-se, noite adiantada, esperando que o dia seguinte tornaria menos odiosos os ingratos, os caluniadores, os ambiciosos sem escrúpulos e todos os mentirosos e oportunistas. Adormecia com esforço. Enquanto dormia ausentava-se do palco da vida e no sonho visitavam-no às vezes as imagens inocentes da felicidade infantil.

João Camilo (1943), in O Som Atinge o Cimo das Montanhas, OVNI, p. 39, Outubro de 2006.

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4 Comments:

At 2:46 da tarde, Blogger manuel a. domingos said...

pois...

 
At 10:28 da tarde, Blogger hmbf said...

Boa malha...

 
At 4:49 da manhã, Blogger J. Camilo said...

pois... só me falta, se quiser identificar-me com o texto, cortar relações com toda a gente, desaparecer e deixar de falar e de ouvir... ainda não cheguei a estado de perfeição tão apurado, para lá caminho... :-) os "desabafos lterários" podem criar solidariedades, mas não resolvem problema nenhum a ninguém, nem sequer a quem os profere... o mundo continuará imperfeito apesar das nossas denúncias... e nós imperfeitos nele.... :-)

 
At 3:24 da manhã, Anonymous redy said...

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