1.11.05

Mancha de Café

A gente concentra-se, olha fixamente o cinzeiro e pensa: um dia serei o teu conteúdo. Mas que sei eu da morte? Isso é assunto para filósofos alemães. Talvez saiba qualquer coisa sobre a solidão, sobre o medo, sobre o ódio que obsidia os corações dos que nunca se sentiram amados. Talvez saiba qualquer coisa sobre isso. Mas como dizê-lo? As palavras não valem um sorriso dos nossos filhos, uma nuvem disfarçada de elefante, uma lua em céu estrelado, um sol espalhando-se sobre as águas, o sussurro das águas, um fruto colhido como um afago. As palavras não valem isso. Logo, como dizer a solidão, o medo, o ódio? Há quem se entretenha com a tristeza, quem faça do desprezo um jogo, uma anedota. Há quem julgue que o real se resume a um escarro pisado na calçada onde dorme um poeta bêbedo. Mas pode o real ser somente o que os nossos olhos vêem? Não pode ao lado do lixo desabrochar um ninho de flores? E essas flores, não serão reais? Será uma flor ao lado do lixo, será o lixo ao lado de uma flor. Mas jamais poderá ser apenas o lixo. Apenas a flor. Porque o real não se resume ao que os nossos olhos querem ver, nem a forma como o sentimos. Por isso, sempre que agora me falarem de morte, num certo sentido estético, eu exigirei o suicídio. Porque já me cansa o ódio pechisbeque, a solidão adorno, o medo crachá. E a ruína, quando não vive nos ossos, é apenas assunto, jogo e enigma para filósofos alemães.

3 Comments:

At 10:24 da tarde, Anonymous Anónimo said...

muito adequado este tema, no dia de todos os santos, dia tradicional da "romaria" ao cemitério, onde cada vela que se acende alimenta a fogueira das vaidades.
lá dizia o nosso amigo, Mario de Sá Carneiro
Quando eu morrer batam em latas(...)


Aurora

 
At 10:42 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Mas o problema não é sempre a vida?
A morte é apenas pó, digo eu.
nelson

 
At 10:51 da manhã, Blogger MJLF said...

Só existe a estética da vida, a morte é o nada ou silêncio absoluto que não podemos conhecer enquanto vivos, Bergeson afirmou que não podemos percepcionar o nada: não conseguimos anular os nossos sentidos na totalidade enquanto estamos vivos, podemos alterná-los apenas - por exemplo, se fecharmos os olhos, não deixamos de ouvir, se taparmos os ouvidos e fecharmos os olhos continuamos a sentir calor ou frio. É claro que a morte também fala enquanto estamos vivos, conhecemos a morte do outro, conhecemos o esquecimento, conhecemos a ausencia ou o luto, que é um processo natural, mas a nossa própria morte não a conhecemos, há-de chegar um dia a hora da verdade. Quanto ao sucicidio, é uma opção, o ser humano é dotado de vontade, não tenho nada contra nem a favor. Enquanto estiver viva, sei que sou um quase-nada, caminho em relação a essa verdade ultima da qual ainda ninguém se livrou, a consciencia dessa verdade leva-me a estar atenta ao que se passa em meu redor, leva-me a disfrutar dos pequenos quase-nada da vida. É muito bom estar por cá.

 

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