22.1.06

ARteoRIA # 4 - Do cinema à televisão

O cinema segundo Tarkovsky é a acção de esculpir o tempo, arte nascida da necessidade espiritual do nosso tempo, não é apenas uma mera invenção tecnológica. Uma arte nascida da falta de tempo do nosso tempo contemporâneo. É claro que Tarkovsky nas suas afirmações se referia ao cinema como sétima arte, ao cinema de autor; mas todo o cinema tem o tempo como dimensão primordial, assim como a poesia, o teatro, a música e a dança: porque as acções são o seu objecto, o movimento tem primazia nestas expressões artísticas. A arte do silêncio é a pintura, porque a representação de imagens é sempre uma suspensão do tempo. Na pintura, uma imagem pode ser a representação de corpos, mais precisamente de formas num determinado espaço, um fragmento da realidade; pode também ser a apresentação de formas num espaço-tempo, uma articulação de fragmentos da realidade; nos dois casos é uma suspensão do tempo num espaço que o aprisiona, em paralelo ao tempo que está a decorrer. Uma imagem toca um outro tempo, no sentido em que é uma paragem silenciosa do fluxo contínuo do tempo real. Por isso, as artes plásticas são consideradas as artes do silêncio, artes que têm o espaço como dimensão primordial, são receptáculos de instantes silenciados. A imagem é um cosmos que impõe silêncio na algazarra aparente e impessoal do caos do mundo, tendo como medium uma linguagem não verbal, a linguagem dos corpos, cores, gestos, traços, suspensos através de jogos de formas numa determinada porção de espaço. O silêncio das imagens ou dos corpos representados implica sempre uma distância em relação ao sujeito que as contempla. Essa distância remete para o carácter sagrado e potencialmente mágico que as imagens têm, e para o seu poder simbólico. Walther Benjamim utilizou o termo aura para falar dessa distância ou campo magnético, que as imagens e objectos artísticos podem possuir. A seu ver, a aura é o aqui e agora da obra de arte, a sua existência única, a sua autenticidade que deriva de tudo o que desde a sua origem é transmissível. No caso das artes do espectáculo, este autor considerou que a aura corresponde a um acontecimento único, um concerto ou espectáculo ao vivo; considerou ainda que os objectos naturais podem possuir aura, quando existe uma manifestação única de uma lonjura, por muito próxima que esteja de nós. Walther Bejamin reflectiu sobre este aspecto da recepção, nomeadamente, em relação às artes visuais, devido à ameaça que os avanços tecnológicos da sociedade moderna são para a aura dos objectos artísticos, por causa da capacidade de os reproduzir. Se por um lado, os meios de reprodução permitiram a democratização das artes, por outro funcionaram como uma dessacralização das imagens e contribuíram para a banalização destas. Além disso, Benjamim estava preocupado com o cinema – a nova arte do séc. xx – um poderoso meio de influência de massas, que poderia ser utilizado pelas ideologias dominantes. No cinema, as imagens são tempo, porque existe uma rápida e continua suspensão do tempo em espaços sucessivos. Esta suspensão em movimento assemelha-se mais ao mistério sequencial do tempo real. O cinema implica uma fruição totalmente diferente das outras artes visuais, por ser constituído de imagens sonoras, sequenciais. O som é da ordem do invisível e invade o corpo humano, instalando-se no sistema nervoso de um modo mais imediato que as silenciosas imagens, o som é sempre um violador. Por isso, as imagens-sons são um potentado, no sentido em que implicam uma ausência de distância entre o sujeito e objecto na recepção, apelam à não reflexão, estimulam a passividade. Mais do que o cinema, que foi sem dúvida a arte popular do séc. XX, no sentido em que movimentou as massas na sua recepção, tal como a Ópera o fazia no séc. XIX, a televisão que não existia na altura em que Benjamim reflectiu sobre estes assuntos, tornou-se o mais potente instrumento de manipulação das massas, uma espécie de magia negra contemporânea, que está democraticamente em todo o lado. A televisão é a actual arena sangrenta, tem o papel do circo no império romano e corre o boato que de futuro irá ser ainda mais poderosa, algo que deixará os progressistas muito contentes: irá conter imagens-sons aliadas aos aromas. Preparem-se para colocar molas de roupa no nariz quando entrarem em espaços privados e públicos com televisores no futuro, para além de tapar os ouvidos ao mesmo tempo.

Maria João

1 Comments:

At 12:57 da tarde, Blogger hmbf said...

Excelente Maria João. Realmente assusta-me ter de gramar com o hálito de algumas carantonhas que aparecem na tv.

 

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