Fragmento # 26 - Nas ruas de Évora
Em Évora existiam ruas proibidas e assustadoras na moraria, onde evitei entrar mesmo de dia, como a Rua do Manuel de Olival, centro da prostituição e marginalidade entre muralhas que desagua no jardim das canas, transformado depois num despidinho, mesmo em frente do Teatro Garcia de Resende; aqui existia uma esplanada felliniana relativamente segura e movimentada, animada também por seres decadentes provenientes do Manuel de Olival, onde uma vez apanhei um dos maiores sustos da minha vida: estava sentada num agradável fim de tarde veranil com umas amigas a conversar, os seres estranhos sentavam-se habitualmente num baixo muro lateral junto ao jardim, por baixo da sombra, como sábios alentejanos; então um miúdo com cerca de seis anos aproximou-se da nossa mesa agarrando-se ao suporte do guarda-sol e olhou-nos com os seus estranhos olhos azuis acinzentados; depois esboçou um sorriso malicioso, que nunca mais esqueci, porque os seus dentes estavam todos cariados, tinham buracos negros. Évora tem destas coisas no seu interior, é uma cidade que sorri sem a ingenuidade infantil, uma cidade que ri com os dentes cariados e podres da história.
Não sei que estranho e potente íman tem a cidade branca das muralhas que é uma constante presença na minha memória e ausência na vida diária – sei apenas que o seu magnetismo é maléfico. Reza a lenda que a cidade foi amaldiçoada por uma bruxa, quando os cristãos a conquistaram aos mouros; não sei se é verdade, mas dizem que foi um acto de vingança, uma bruxa enterrou a cabeça de uma mula numa das portas da cidade. Se calhar foi no Arco da rua D. Isabel, por isso me assustei sempre que tive de passar por baixo das suas pedras. Évora, sempre que posso não vou lá, conheço aquelas calçadas de cor e salteado, quando tenho de lá ir apanho a última camioneta disponível, demoro um tempo infinito a sair da minha casa em Lisboa, arranjo todo o tipo de pretextos para me atrasar. Nem sempre foi assim, a relação com a cidade foi sempre conflitual, mas após a morte de um amigo pintor, o José de Carvalho Guinapo, em Setembro de 1991, passei a odiar aquele branco das paredes, aquelas ruas labirínticas que vão sempre dar ao mesmo sítio. Porque o Zé sabia que ia morrer, estava doente e omitiu-me esse facto, ele voltou para Évora para poder terminar – e morreu sozinho na sua casa, na sua cidade, encontram-no morto com a obra em seu redor, já estava assim há alguns dias. Évora é uma cidade que cheira a morte, eu sei que posso também lá ficar emparedada nalguma parede, mas prefiro viver ao pé do Tejo, ao pé do mar, por enquanto ainda tenho muitas ruas e calçadas novas para percorrer, quero gastar muitas solas de sapatos perdendo-me em cidades por este mundo fora, espreitando discretamente janelas e portas com universos desconhecidos; devo isso também ao Zé de Carvalho, não me esqueço das suas palavras, da sua luta até ao fim, da sua força e fé no trabalho artístico, só a morte o venceu. Évora habita a minha memória numa espécie de sepultura em vida, que me chama, constantemente, mas prefiro olhá-la bela e distante na estrada, sobretudo, quando vou a caminho de Espanha, assemelha-se a um encantamento, assim ao longe até parece ficção.
Maria João
Não sei que estranho e potente íman tem a cidade branca das muralhas que é uma constante presença na minha memória e ausência na vida diária – sei apenas que o seu magnetismo é maléfico. Reza a lenda que a cidade foi amaldiçoada por uma bruxa, quando os cristãos a conquistaram aos mouros; não sei se é verdade, mas dizem que foi um acto de vingança, uma bruxa enterrou a cabeça de uma mula numa das portas da cidade. Se calhar foi no Arco da rua D. Isabel, por isso me assustei sempre que tive de passar por baixo das suas pedras. Évora, sempre que posso não vou lá, conheço aquelas calçadas de cor e salteado, quando tenho de lá ir apanho a última camioneta disponível, demoro um tempo infinito a sair da minha casa em Lisboa, arranjo todo o tipo de pretextos para me atrasar. Nem sempre foi assim, a relação com a cidade foi sempre conflitual, mas após a morte de um amigo pintor, o José de Carvalho Guinapo, em Setembro de 1991, passei a odiar aquele branco das paredes, aquelas ruas labirínticas que vão sempre dar ao mesmo sítio. Porque o Zé sabia que ia morrer, estava doente e omitiu-me esse facto, ele voltou para Évora para poder terminar – e morreu sozinho na sua casa, na sua cidade, encontram-no morto com a obra em seu redor, já estava assim há alguns dias. Évora é uma cidade que cheira a morte, eu sei que posso também lá ficar emparedada nalguma parede, mas prefiro viver ao pé do Tejo, ao pé do mar, por enquanto ainda tenho muitas ruas e calçadas novas para percorrer, quero gastar muitas solas de sapatos perdendo-me em cidades por este mundo fora, espreitando discretamente janelas e portas com universos desconhecidos; devo isso também ao Zé de Carvalho, não me esqueço das suas palavras, da sua luta até ao fim, da sua força e fé no trabalho artístico, só a morte o venceu. Évora habita a minha memória numa espécie de sepultura em vida, que me chama, constantemente, mas prefiro olhá-la bela e distante na estrada, sobretudo, quando vou a caminho de Espanha, assemelha-se a um encantamento, assim ao longe até parece ficção.
Maria João
8 Comments:
gostei do texto MJ, apesar da dureza das imagens... acoplar memórias a espaços é inevitável, já dizia Bachelard, mas quando é a dor a pintar os muros das cidades a coisa vira um caso sério... há cidades mortais, realmente, que fedem, tresandam ao cheiro doce da carne em decomposição... sinto isso em duas ou três, cidades que me empurram para longe por razões semelhantes, talvez um dia as tenha pintado de dor (hábito pouco saudável e nada recomendado)...a ter que ser, que seja forçosamente... felizmente évora está salva, para mim ainda vive...apesar das bruxas e dos feitiços na rua D. Isabel
Leal Barros: obrigada pelas tuas palavras, " A poética do espaço" de Bachelard também me ajudou a entender muitas coisas. O cheiro da carne em decomposição não é doce e a minha relação com Évora é conflitual, mas por vezes faço as pazes com a cidade. Talvez a escrever coloque muitas coisas em ordem. Quanto à dor, tento enfrenta-la procurando alguma luz no escuro, não é uma forma de prazer, é sim um calejamento que faz parte da existência humana. Era bom que não fosse assim e ainda bem que Évora está salva para ti, porque é uma cidade muito bela. Para mim tem uma beleza amarga, mas isso relaciona-se com minhas as memórias, se bem que a memória também ficciona e engana muito.
Maria João
e verdade que Evora tem uma beleza especial, mistica, mas ao mesmo tempo torna.se num ciclo vicioso que nâo da para lhe fugir quando la estou desejo ir emora quando nã estou tenho saudades.vou la para me lembrar reviver, saio de lá para esquecer sem nuca lograr, Évora tem um magnetismo especial, dentro dela a vida e a morte as oposições contrariedades o tudo ou nada...Èvora e cheia de vazio numa dança de nuances e tão triste e tâo bonita, nela não esquecamos nasceram cresceram e morreram tantos artistas
obrigada MJ por não deixar cair em esquecimento a memória do meu pai, fiquei muito contente com as suas palavras. diga.se de passagem que dou tudo para saber sempre mais um pouco sobre o pai o amigo e o artista o meu mail e : salomeguinapo@chello.be se quiser ou tiver mais memórias para partilhar comigo, pois a maneira que encontrei para não o deixar morrer é lembra.lo! OBRIGADA!
Évora, velha Évora, já mencionada pelos romanos, e mais antiga ainda, celtibera, não foi? Uma cidade onde há paredes feitas de ossos humanos, igrejas que nunca são lavadas, pedras neolíticas nos almendres, já a tornam carismática, no mínimo. Havia uma bruxa... os marinheiros portugueses levaram essa tradição para o Brasil e lá tomou novo fôlego africano e índio - eles conhecem bem a bruxa Évora ou "de Evora" uma figura do Candoblé ou não é ? Uma dessas bruxas Evora teria vivido em Portugau nos sécs. 18 ou 19 mas há outra que ensinou magia e astrologia a Cipriano o famoso feiticeiro do sec. III. depois ha outra bruxa Évora do tempo dos mouros - sec. IX, X ou XI. Bruxas há muitas ! Ainda ha pouco o professor Saraiva nos mostrava a casa em ruinas da famosa bruxa da Arruda. em Evora quantas terão vivido e quantos alquimistas que são bruxos mais elegantes. As mulheres são sempre expiatórias...
Évora, velha Évora, já mencionada pelos romanos, e mais antiga ainda, celtibera, não foi? Uma cidade onde há paredes feitas de ossos humanos, igrejas que nunca são lavadas, pedras neolíticas nos almendres, já a tornam carismática, no mínimo. Havia uma bruxa... os marinheiros portugueses levaram essa tradição para o Brasil e lá tomou novo fôlego africano e índio - eles conhecem bem a bruxa Évora ou "de Evora" uma figura do Candoblé ou não é ? Uma dessas bruxas Evora teria vivido em Portugau nos sécs. 18 ou 19 mas há outra que ensinou magia e astrologia a Cipriano o famoso feiticeiro do sec. III. depois ha outra bruxa Évora do tempo dos mouros - sec. IX, X ou XI. Bruxas há muitas ! Ainda ha pouco o professor Saraiva nos mostrava a casa em ruinas da famosa bruxa da Arruda. em Evora quantas terão vivido e quantos alquimistas que são bruxos mais elegantes. As mulheres são sempre expiatórias...
Li com toda a atenção os textos sobre Évora, minha cidade natal, mas na qual não vivo desde 1963, altura que fui para a tropa.
A rua Manuel de Olival pertence ao pasado, hoje em dia não existem ruas proibidas em Évora.
Tenho pena do seu amigo mas a vida é assim, nascemos emoremos, mas lhe direi uma coisa, emboara viva longe da cidade de Évora, a trago sempre no coração.
Vivo na Ásia, conheço parte do mundo, nem Lisboa, onde diz morar é tão bela e tão cheia de história como a cidade museu que me viu crescer.
Todas as cidades do mundo tem coisas boas e coisas más, Évora não é excepção.
Poderá passar pelo arco de D. Isabel que ele não cai, eu trabalhei na Rua da Coredoura e tinha que passar por debaixo desse arco dezenas de vezes ao dia, pois a central de coreios fica a ele ligada.
Respeito a sua escrita, mas deveia ver também a parte boa e não só essa sádica que relatou.
Um abraço cá deste oriente distante de um alentejano e Eborense.
Um Grande beijo... em memória do Zé Guinapo.
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