13.2.06

Agostinho da Silva

Quando fui estudar filosofia para Lisboa, levava meia dúzia de livros na bagagem: Assim Falava Zaratustra, Discurso do Método, Apologia de Sócrates, O Existencialismo é um Humanismo, A Utopia e as Sete Cartas a Um Jovem Filósofo, de Agostinho da Silva. O pouco que se pôde arranjar em 17 anos passados numa vila da província, elevada a cidade por via do cimento, onde o mais que se aprendeu foi alguns versos, descobertos muito a custo, de Ruy Belo. Nos primeiros anos da universidade, o contacto com outras obras afastou para a penumbra dos meus interesses as palavras de Agostinho da Silva. Leonardo Coimbra, de quem Agostinho foi aluno, parecia-me bem mais entusiasmante. Isto para falar apenas do pensamento português, ou, melhor dizendo, do pensamento produzido em terras lusas. Aconteceu que, com o passar dos anos, ambas as obras, as de Agostinho da Silva e de Leonardo Coimbra, se consolidassem nos meus interesses como das mais relevantes da parca filosofia erigida em Portugal. Ambos tiveram o engenho e a ousadia de pensarem pelas suas próprias cabeças, o que no nosso país rareia e é, bastas vezes, tomado por arrogância. À citação, Leonardo e Agostinho preferiram a produção, a criação. No caso de Agostinho da Silva, tal atitude valeu-lhe não propriamente um sistema filosófico fechado sobre si mesmo, mas uma doutrina aberta, com ramificações várias no género, no estilo, na profusão de ideias e modos de as expressar. Pedagogo? Filósofo? Tanto me faz. Deixo o assunto a quem com ele se entretenha. Foi, antes de mais, um pensador impar e exemplar no tristonho panorama das ideias em Portugal. Regresso, com a brevidade que o meio exige, ao livro da adolescência: as Sete Cartas a Um Jovem Filósofo. Aí encontramos, em registo irónico e autocrítico, como manda a boa filosofia, um testemunho exemplar de humildade perante a grandiloquência das obras acabadas: «o grande perigo das pessoas que falam bem: são as serpentes de si próprias». Aí encontramos um cuidado extremo, surpreendentemente simples, com os conceitos mais fundamentais (felicidade, amor, liberdade, amizade, Deus, etc). Encontramos sobretudo a expressão afável de um pensamento humanista que olhava para o homem com a desconfiança que ele nos deve merecer: «o ser humano faz-me por vezes um pouco de impressão: gosto mais dos troncos dos plátanos do que dos nossos literatos». Mas, sobretudo, encontramos nessas cartas uma lição de vida e sabedoria, que eu diria de tipo clássico, assente na assumpção das contradições insolúveis essenciais: «a batalha entre o querer e o poder» - ecos de Antígona. Que fazer perante tal evidência? Esmorecer? Desistir? Não. A consciência do insolúvel é o princípio de uma aceitação do mundo pela percepção possível que dele temos, aceitação essa que se constituirá não no sentido obstrutivo do pensamento, mas antes como princípio a partir do qual se exercerá a liberdade da descoberta individual. Nada de sistemas e esquemas fechados, nada de doutrinas axiomáticas mais ou menos gregárias, nada de absolutismos. O segredo reside na vibração, na forma como cada um vibra com a descoberta da sua intimidade no confronto com o outro: «ou você domina a filosofia ou a filosofia o domina a você: só quem é forte se apaixona; mas se você for ovelha ante os filósofos, só lhe resta um destino: o de balir». Haverá conselho melhor a dar aos que se propõem pensar? As cartas que José Navarro escreve a Luís, foram a mais importante lição de filosofia que tive na adolescência. Tenho-as guardadas, como portas (não) definitivas na prática diária da docência. Não só da docência, confesso. Na prática solitária de ir vivendo tanto quanto me é possível hoje viver. Daí que a minha dor e o meu desalento, não sejam, de todo, o prato onde me prefiro alimentar. Ele há coisas bem mais terríveis a acontecer no mundo do que a minha vida . Em suma: «Para cãezinhos de pêlo encaracolado e patinhas que mal aguentam o corpo tenho um fornecimento de almofadas, pires de leite, bolacha macia, perfumes, pentes finos, e nojo.»

1 Comments:

At 2:16 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Estou a começar a descobrir Agostinho da Silva. Mais vale tarde do que nunca!Um português que pensa por si é uma raridade.Na Quinta da Regaleira fui-lhe apresentada!Estou curiosa...

 

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