11.2.06

Por causa de Photomaton & Vox, Assírio & Alvim, Lisboa, 1979. (excerto)

Herberto Helder,
Eu nunca tomei uma bica consigo. Nos seculares passeios do nosso adro é difícil tal prestidigitação. É verdade que tenho um certo susto das suas palavras. Deve ser o único português de quem diria tal coisa. As razões são curtas e julgo que se resumem a uma: você escreve assim.
(...)
A poesia portuguesa que se lhe seguiu só era interessante quando não estava colada a si. Nenhum poeta português do pós-guerra precisou tanto de se ver fugido. Leia muitos desses que aparecem por aí, entre pós-surrealista e o pós-beatnik, leia mesmo os que fizeram poesia de comício à custa de banalização de imagens e processos seus e diga-me se não é assim.
Poucos podem ter a honra de ter mais inimigos do que você. Inimigos como eu, a considerá-lo um dos maiores, mas a fazer tudo por causa disso, por o combater naquilo que me leva à escrita. Aliás você é dos poucos que não anda atrás dos mais novos para lhes «sacar» o que de melhor vão conseguindo propor. Inimigos como outros, da geração que o antecedia, mais de raiva, ultrapassados pelo que você fazia, ou na bovina ignorância da sua escrita até terem acordado tarde demais (exceptuo alguns, dentre esses de quem já tenho tentado falar aqui). Inimigos como ainda outros, calados, dos que surgiram consigo nos inícios desses anos 60, ou dos que estavam já na sua linha de escrita, porque sentiam o vazio a fazer-se à volta dos seus pés. Muitos andavam de alma revirada. Eu era muito novo e podia observá-los com eles a julgarem-se impunes. Tinham entrado numa de poema curtinho, tudo bem escolhido e recatado, fácil de ser entendido na Outra Banda. Dizia-me uma delas, que depois deixou crescer os versos: «Tem demasiados violinos a entrarem por demasiadas janelas.» Veja lá o mal que faz aos ansiosos terem que fechar as janelas e, nessa falta de ar, ouvirem os ditos só na grafonola.
Quando penso no um ou dois poetas da minha geração, sei que eles são bons porque não se lhe assemelham, quase tanto como por possuirem uma veemência própria a reivindicar. Quando penso nos da sua geração, penso que são maus porque não atingiram o centro do tempo com a placidez do furacão em torno que você foi. Penso que, dos anos 60, só Ruy Belo pode competir consigo com o fôlego incomparável dos que ganham sem correr. Assim como penso que, dos livros que se seguiram à sua Colher na Boca, só Outro Nome de Gastão Cruz, poucos anos depois, e Crónica de João Miguel Fernandes Jorge, bastantes anos mais tarde, tocaram algo de profundamente alterante e central entre os mais novos.
(...)
A moral é: no meio da miséria institucional que cerca a nossa cultura, da prostituição das editoras comerciais e das outras que só se dedicam às obras completas dos vendáveis, desses autores que lhes aceitam fazer o jogo, do desprezo a que a máquina política votou a difusão séria de obras mais significativas ou de autores mais novos para promover a mediocridade dos que se deixam enredar nas suas teias partidárias dominantes - no meio desses «porco» que é o nosso mercado cultural, a maioria das nossas editoras, os programas literários, a «felicidade» é que possam ainda, aqui um, além outro, aparecer livros como o seu. E que existam figuras de recusa exemplar como a sua é.
Joaquim Manuel Magalhães, Os Dois Crepúsculos - sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, A Regra do Jogo, 1981.

4 Comments:

At 2:44 da manhã, Anonymous Anónimo said...

´´O Mel. não venhas cá deitar poeira nos olhos à malta, pois quem amandou insultos e obscenidades torpes foram os retricados do teu naipe. Não foi o JMS que apenas te dedicou um intererssante poema satírico, que já aqui alguém chamou e muito bem "bengalada".
Só acertas nisto: o visado está-se a borrifar.

ppp

 
At 2:55 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Leia-se :RETRINCADOS.

 
At 9:49 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Rui Lage, também sublinho essa parte. Mas o problema hoje é outro: haver quem considere, sem discriminação de partes, igual aquilo que, em boa verdade, não é. Haver nuns tantos poetas, sejam eles mais ou menos amigos da "metáfora" (vai entre aspas, porque metáfora pode ser muita coisa e coisa nenhuma), sejam eles mais ou menos amigos do "real" (vai entre aspas, porque real pode ser muita coisa e coisa nenhuma), com linhas comuns de pensamento, linguagem, sentido estético, não obriga a que os devamos considerar iguais. Há variantes discursivas, dentro duma mesma "matriz" poética, que devem ser levadas em conta. Quem o não fizer, corre o risco (é só uma maneira de dizer, claro) de passar ao lado do que é verdadeiramente importante: a poesia [enquanto forma de expressão de um indivíduo no mundo e não de um colectivo abstracto].

 
At 2:00 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Caro Rui Lage, estamos de acordo. E olhe só: onde "enfiar" um poeta como Daniel Faria, ou mesmo o Rui Pires Cabral? Onde "enfiar" um poeta como o Nuno Moura? Como classificar a poesia de Vasco Gato? Ou a sua, ou mesmo a de Rui Coias? Dos mais novos (em idade) aprecio sobretudo os inclassificáveis, os que pela qualidade do que escrevem não se deixam enfiar nesta ou naquela prateleira. Quanto ao resto, era importante reler o Joaquim Manuel Magalhães. Porque estou com pressa, deixo uma pista: um texto que refiro aqui (http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2005/12/formiga-argentina.html) a propósito de um livro de denúnica - «Tem de haver uma nova geração de poetas para quem o futuro se chame a denúncia deste presente».

 

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