ARFE COMTUSA, digo, olha que se lixe (1)
Tenho acompanhado as discussões ou exposições que têm aparecido em vários blogs sobre poesia, arte, o que são ou podem ser, os seus limites ou falta deles, etc.
Um ponto em que grande parte das pessoas parece concordar, é este:
- A obra de arte deve comover, A obra de arte comove, A obra de arte não nos pode deixar indiferentes (…porque se deixa não é obra de arte), A obra de arte provoca um estremecimento, que pode surgir em forma de choque ao nível do discurso, e inúmeras outras formulações e derivações desta ideia.
Mas se é verdade que à primeira vista esta ideia parece razoável a muito boa gente, a facilidade começa a fender-se quando se puxa um pouco mais. Posso então perguntar a uma pessoa:
- És capaz de reconhecer como arte uma obra que não te comove?
Responda-se.
Mas consigo apostar que as respostas, ou semi-respostas, ou as dúvidas, serão muito reveladoras. Reveladores laterais de formas de tratar o mundo, claro (não é a resposta que interessa mas a forma da resposta, porque aqui só a forma revela).
Imaginem que uma das respostas à pergunta era:
- Esse poema que me mostras até pode ser arte ou poesia ou lá o que lhe queiras chamar, mas a mim não me comove e não me interessa (pelo menos uma das pessoas que respondem assim começa por dizer sei lá pá mas quando irritada suficientemente explica que aquele poema pode ser arte para o autor ou a mãe dele mas que para ele ou ela não é).
Parece que temos aqui a intervir a questão do gosto, da(s) idiossincrasia(s) (que palavra idiota) pessoais. Pergunto ainda:
- Se algumas canções pimba me comovem, posso considerá-las obras de arte - ainda que para isso tenha que pôr a acento no lado da emoção, da comoção, em detrimento do talento ou virtuosismo do autor plasmados na obra ?
Repare-se que não se trata apenas de rótulos mas de toda uma vontade de compreender e usufruir o mundo (se eu digo e penso que aquele poema não é arte, não é poesia, as probabilidades de eu ler o livro em que ele está contido, ou de o ler com atenção, diminuem; se me responderem podes chamar arte ao que te apetecer, estão a fugir à questão; ah! e sei bem que algumas pessoas se comovem doidamente diante de um belo bife – mais ou menos artístico).
Pode pôr-se a questão do consenso:
- Será que é possível criar um consenso interessado (próximo ou coincidente com a admiração) através de formas de empatizar (o mundo, a obra) distintas?
Mas uma coisa é verdade. A estas perguntas generalistas é (parece) mais fácil responder: Sim, sim, podemos, podemos!!
Quando é assim é preciso voltar ao Sr. Concreto:
- Consegues admirar uma obra de arte de que não gostes? (que pergunta mal feita…)
Ou então, pegando no que vai atrás:
- Será possível admirarmos – como obra de arte; considerando-a uma obra de arte – uma obra com a qual não empatizamos ou, que não nos comove? E será isso desejável, e porquê?
Rui Costa
Um ponto em que grande parte das pessoas parece concordar, é este:
- A obra de arte deve comover, A obra de arte comove, A obra de arte não nos pode deixar indiferentes (…porque se deixa não é obra de arte), A obra de arte provoca um estremecimento, que pode surgir em forma de choque ao nível do discurso, e inúmeras outras formulações e derivações desta ideia.
Mas se é verdade que à primeira vista esta ideia parece razoável a muito boa gente, a facilidade começa a fender-se quando se puxa um pouco mais. Posso então perguntar a uma pessoa:
- És capaz de reconhecer como arte uma obra que não te comove?
Responda-se.
Mas consigo apostar que as respostas, ou semi-respostas, ou as dúvidas, serão muito reveladoras. Reveladores laterais de formas de tratar o mundo, claro (não é a resposta que interessa mas a forma da resposta, porque aqui só a forma revela).
Imaginem que uma das respostas à pergunta era:
- Esse poema que me mostras até pode ser arte ou poesia ou lá o que lhe queiras chamar, mas a mim não me comove e não me interessa (pelo menos uma das pessoas que respondem assim começa por dizer sei lá pá mas quando irritada suficientemente explica que aquele poema pode ser arte para o autor ou a mãe dele mas que para ele ou ela não é).
Parece que temos aqui a intervir a questão do gosto, da(s) idiossincrasia(s) (que palavra idiota) pessoais. Pergunto ainda:
- Se algumas canções pimba me comovem, posso considerá-las obras de arte - ainda que para isso tenha que pôr a acento no lado da emoção, da comoção, em detrimento do talento ou virtuosismo do autor plasmados na obra ?
Repare-se que não se trata apenas de rótulos mas de toda uma vontade de compreender e usufruir o mundo (se eu digo e penso que aquele poema não é arte, não é poesia, as probabilidades de eu ler o livro em que ele está contido, ou de o ler com atenção, diminuem; se me responderem podes chamar arte ao que te apetecer, estão a fugir à questão; ah! e sei bem que algumas pessoas se comovem doidamente diante de um belo bife – mais ou menos artístico).
Pode pôr-se a questão do consenso:
- Será que é possível criar um consenso interessado (próximo ou coincidente com a admiração) através de formas de empatizar (o mundo, a obra) distintas?
Mas uma coisa é verdade. A estas perguntas generalistas é (parece) mais fácil responder: Sim, sim, podemos, podemos!!
Quando é assim é preciso voltar ao Sr. Concreto:
- Consegues admirar uma obra de arte de que não gostes? (que pergunta mal feita…)
Ou então, pegando no que vai atrás:
- Será possível admirarmos – como obra de arte; considerando-a uma obra de arte – uma obra com a qual não empatizamos ou, que não nos comove? E será isso desejável, e porquê?
Rui Costa
14 Comments:
Caro Rui, sem estar a aproveitar-me para fazer publicidade, remeto-o para 3 textos q coloquei no meu blog (Horácio, Max Jacob e Pessoa), a propósito do mesmo assunto
A capacidade de nos emocionarmos não é igual ao longo do tempo, à medida que vamos lendo, ouvindo ou vendo mais obras, serão cada vez menos aquelas que ao mesmo observador provocarão emoção.
Para uma construção da "educação estética" de cada um considero que é um bom padrão, desde que haja gosto e curiosidade pela temática.
Se falarmos de pessoas que tenham resposabilidade profissionais nesse campo, então já é necessário uma outra preparação, mas continuo a achar que o gosto pela temática e a curiosidade são os melhores guias que podemos ter.
rui: fui ver e utilizo uma das citações no próximo post.
mário: "a capacidade de nos emocionarmos não é igual ao longo do tempo" parece remeter, entre outras coisas, para a questao da "novidade". O que chocou ou comoveu há 100 anos pode não chocar ou comover hoje (embora possa continuar a ser "válido").Também refiro isto no próximo post.
Obrigado aos dois pelas dicas.
Rui Costa
Camarada Costa, este teu primeiro post levanta uma série de questões bem interessantes. Algumas, se bem entendi, podem mesmo ser tomadas como afirmações. Eu julgo que a comoção não é um fim em si da obra de arte. Aliás, esse conceito de «dever» que tantas vezes aparece frivolamente aplicado irrita-me sempre um pouco. A poesia «deve» ser isto, a arte «deve» ser aquilo… Para o tanas mais o dever. Mas não vou alongar-me muito nesta questão. Gostava só de contar uma história acerca da comoção. Muitas pessoas comovem-se com a poesia de Eugénio de Andrade. Eu não. Uma vez confessei-o a um amigo poeta e ele disse-me que era da idade. Talvez esta resposta vá no sentido do comentário do Mário. A verdade é que o tempo vai passando (isto já deve ter sido há uns bons 10 anos) e a poesia de Eugénio de Andrade continua sem me comover. Eu acho que a comoção tem sempre um misto de sentimento e razão. A verdade é que se olho para uma paisagem translúcida, eu comovo-me. Se olho um rio poluído, também me comovo. Mas são duas espécies de comoção diferente. Uma, pelo êxtase que me provoca. Outra, pela tristeza. O mesmo acontece com a poesia. Uma poesia mais transparente, comove-me na medida em que me extasia. Uma poesia mais suja, mais do feio (se quiserem), comove-me por razões diferentes. Por que há então poesias (poemas?) que não me comovem? Talvez isto seja da ordem do inexplicável, nem tudo tem que ter uma explicação. Talvez se explique precisamente por aí: a forma como olhamos um poema, se não é a mesma pela qual olhamos uma paisagem, é bastante similar. Eu não sei por que gosto de pão. Só sei que gosto. Mais: não preciso saber por que gosto de pão para gostar de pão. Por que razão precisarei de saber por que gosto de poesia? Recuso racionalizar a relação com o poético, com a arte, a esse ponto. Acho que foi a Manuel António Pina que uma vez ouvi dizer que ao perguntarem-lhe porque tinha escrito uma coisa de determinada maneira, ele terá respondido simplesmente: porque é bonito. Tal como a sua filha lhe havia respondido a uma pergunta similar sobre um desenho que tinha feito. Manuel António Pina respondeu como uma criança porque sabe o seu lugar: « Fiquemos para sempre entre as crianças, ó poetas. É esse o nosso lugar, entre as crianças, como se ainda não soubéssemos senão chorar quando nos dói e rir quando nos causa algum tipo de prazer.» Venha o segundo post sobre o tema!
henrique: já estou como o Mário Zambujal: tudo tem explicação, a explicação é que pode ser inexplicável. Quanto a Eugénio de Andrade, não me comove especialmente (talvez acalme, pelo menos em certas alturas) mas chamo-lhe poesia. Quanto à resposta "porque é bonito", é tão perfeita que merece a teoria de um adulto...Inté, Rui Costa
A minha questão acerca do tempo era no sentido de irmos "afinando" a nossa sensibilidade para as coisas. Um exemplo musical, por ter começado a ouvir música com atenção por volta de 1973 já passei por muitas modas musicais. Quando ouço grupos contemporâneos, em muitos casos a música soa-me a uma repetição de coisas já feitas e sem nenhum elemento que me prenda a atenção. No entanto há autores ou grupos que conseguem criar peças musicais que me fazem levantar o ouvido para prestar mais atenção (são raros mas existem). A memória do que já foi feito faz com que só me chamem a atenção aqueles que me conseguem surpeender/emocionar. No entanto quando começei a ouvir música tudo me parecia novo e entusiasmante (mas convém não exagerar o Art Sullivan sempre me deu asco!).
Nesse caso, acho que te referes ao problema da saturação. É como na poesia: há imagens que se tornam banais com o tempo, o que leva a que nos saturemos delas. Logo, passam a ser-nos indiferentes. Isso também me acontece com a música, de facto. Aliás, há semelhanças "incontornáveis" entre a música e a poesia. Mas há outro aspecto interessante no teu comentário: a educação do gosto. À medida que o tempo vai passando, o gosto pode afinar-se-nos para sabores outrora detestados. Grandes obras ganharam tudo com o tempo. Outras, perderam-se. Isto leva-me a pensar que o tempo é danado, é ele quem acaba por definir a qualidade das coisas. E as nossas avaliações estarão sempre dependentes desse tempo que passa mais depressa por uns do que por outros. Por isso mesmo, prefiro ser cauteloso. Quando me perguntam: isto para ti é arte, diz-te alguma coisa? Eu digo: ainda que a mim não diga nada, se disser a alguém é porque é arte. O que eu não consigo compreender é por que há obras que me dizem alguma coisa e outras que não. Volto ao mesmo: é como o pão. Não sei, nem quero saber. Sabê-lo, acho eu, acabaria por retirar prazer à degustação. É como se diz aqui na terra: quando se sabe o segredo do pão-de-ló, ele ganha logo com outro sabor.
Onde se diz «com outro sabor», leia-se «outro sabor». O seu a seu dono. :)
Recordo o ajuizado Kant e lembro o que nos disse sobre o momento em que nos encontramos com o belo (mais lato que a Arte e as suas obras, ainda assim). Há, sim, uma co-moção, defende. Que nos atira para fora do que podia ser apenas a nossa subjectividade frente ao céu-retrato-poema-flor-bicho-bife e nos lança no senso comum, mas, aqui, sentir comum, num sentido da humanidade, da universalidade suposta desse nosso sentir. Um meio-caminho, em que o sentir é nosso, mas podemos lá crer que o resto da humanidade não o partilhe. Perante a evidência tão clara de que qualquer um produziria o mesmo juízo, lá atiramos, com as pupilas dilatadas e o peito insuflado: Olha, que belo!!
mário: "afinação", sim, porque não se nasce a gostar de jazz. um recém-nascido sente-se confortável a ouvir as malhas simples do "Malhão" e desconfortável a ouvir Chet Baker (há estudos sobre isto, e não me parece muito difícil de aceitar ao nível do senso comum).
hmbf: há "coisas" que me dão tusa ainda que MA expliquem por uma fórmula química ou teorema matemático.
mc: vai aparecer por cá o Kant, mais cedo ou mais tarde.
Rui Costa
Rui: não duvido que essas coisas existam. Assim como não duvido que, mesmo pelo mais raso senso comum, aceites que a banalização de qualquer coisa acaba sempre por lhe retirar o poder de espantar. Logo, retira-lhe o que mais facilmente nos comoveria. A força das grandes obras reside aí: nessa capacidade de nos irem espantando ao longo do tempo. É como se estivéssemos sempre a descobrir-lhes coisas novas.
Quanto a Kant, não foi por acaso que comecei por estabelecer uma analogia entre a nossa forma de olhar a natureza e a forma como olhamos uma obra de arte. Kant faz essa distinção (arte não é natureza). Mas a forma como olhamos ambas é deveras similar. Kant liga a comoção à sublimidade, dizendo que «um juízo de gosto puro não possui nem atractivo nem comoção como princípio determinante, numa palavra, nenhuma sensação enquanto matéria do juízo estético». Será isto possível? Levantas a questão essencial: «consegues admirar uma obra de arte de que não gostes?» Respondo-te liminarmente: sim. Dou-te um exemplo, mas podia dar-te muitos mais: Andy Warhol. Eis uma obra que não me provoca qualquer comoção, mas não me é indiferente. Antes pelo contrário, admiro-a profundamente.
talvez, agora por partes, e com mais uma achega autorizada, lembro o "plaisir" da descodificação de tal objecto e, algo que porventura andará mais perto da noção de sublime, a "jouissance" perante um outro. Por exemplo, um objecto de uma cultura estranha, para o qual nem ando apetrechada com ferramentas suficientes, não compreendo, nem tal me interessa, só quero ficar ali, na contemplação,a exclamar uma vez mais: oh, que belo...
Entretanto , a propósito, lembrei-me desta palavra: "deslindo", cujo prefixo me inquieta deveras...
mc: deslindar significa "desmontar" o "lindo", como bem intuiste. como se o reconhecimento do lindo fosse (e é) um esforço (ou, dito de outro modo, apelasse a capacidades que tendem a sofisticar-se): por exemplo, a capacidade de achar "linda" uma paisagem continua a existir mas só porque deslindá-la é também cada vez mais difícil- porque o olhar é cada vez menos simples e, sendo pensamento, se atravessa de associações e links para todo o tipo de “plateau”- esta sofisticação permite um “deslindamento” cada vez mais sofisticado e, quase-paradoxalmente, que o “lindo” da paisagem continue a sê-lo.
Rui Costa
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