UMA PEDRA
Uma pedra sentada ao balcão olha as garrafas expostas na vitrina. Aprende a constatar o seu desígnio. Toda a sua vida é de pedra, enquanto o que aviva as garrafas é o líquido que trazem dentro. As garrafas dependem do líquido. A pedra, espezinhada, suja, onde muitas beatas foram pisadas e muitos escarros caíram, depende apenas de si própria. A pedra olha as garrafas e pensa-se líquida, bebível, desejável. Mas constata que é uma pedra. Um arremesso para a morte, um grito atravancado na garganta, um instrumento fácil de instrumentalizar. Uma pedra sentada ao balcão despeja as gabarolas garrafas de vitrina. E soa-lhe tão fácil desarrolhá-las, despejá-las, tão só rótulo que são. A pedra apercebe-se que o grau está-lhe na fome com que bebe. Não está no líquido, esse é apenas sangue multicolor e, em certas circunstâncias, terapia possível. Uma pedra sentada ao balcão aprende a aceitar-se. É bem provável que venha a gostar de si, a achar-se, pelo menos, tão desejável quanto o são as garrafas de vitrina. É bem provável que um dia se lance a si própria contra as garrafas e as desfaça em pedaços de vidro. Porque uma coisa é certa. Se é na terra que a pedra vive, será à terra que o líquido, a vida das garrafas, irá, mais tarde ou mais cedo, parar.
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