DOMINGO
a Carlos Parreira
A distância entre mim e o que me circunda,
sempre a repercutir-se nos meus gestos,
aflige-me e dói-me.
Olho para aquela rua vagamente,
olho em volta de mim neste café longínquo,
e todas as coisas não significam coisa alguma
e toda a gente tem escrita no rosto
quanta traição da vida!
Ah, que não consigo ser fraterno e integrar-me
e ser despreocupado e ignorante
do meu, do nosso drama…
Bem quisera esquecer-me e enlear-me
nas coisas fúteis, ingenuamente vis,
que alimentam o destino desta gente.
Mas olho para mim e sinto-me diferente,
amachucado pela lucidez duma intuição
que todas as tentativas para imiscuir-me
não conseguem mais do que exacerbar.
Consola-me a certeza de que tudo isto é fictício,
e não me custa a renúncia, em troca deste contemplar
calado, discreto mas tumultuoso…
Lá fora há agitação e há bulício.
Paira sobre as coisas a inutilidade,
o frágil, o efémero…
(Chego às vezes a pensar que tudo não seja mais que representação.)
Cansado do espectáculo,
abandono esta mesa de café
e vou passear ilusões impossíveis,
até que a noite venha e eu recolha
à solidão do meu quarto
- mãos vazias e coração intranquilo.
Luís Amaro nasceu em Aljustrel no ano de 1923. Começou a escrever aos 12 anos em pequenos jornais alentejanos, mas cedo se radicou em Lisboa. Passou pela Portugália Editora e ajudou a fundar a revista Árvore – com António Luís Moita, António Ramos Rosa, Egito Gonçalves, José Terra e Raúl de Carvalho. Em 1949 publicou o seu único livro de poesia, intitulado Dádiva. Colaborou com publicações como a Távola Redonda e a Seara Nova, tendo ingressado, em 1970, na Fundação Calouste Gulbenkian onde viria a trabalhar na revista Colóquio-Letras. Em 1975 reuniu a sua obra poética no volume Diário Íntimo (Dádiva e Outros Poemas), recentemente reeditado pela &etc. »
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