28.3.07

Elogio do popular.



O papel das histórias populares foi pertinentemente sublinhado por Jean-François Lyotard em A Condição Pós-Moderna. No capítulo sexto dessa obra, intitulado Pragmática do saber narrativo, Lyotard distingue o saber em geral do conhecimento e da ciência, atribuindo ao saber uma abrangência de enunciados que escapa ao carácter denotativo da linguagem científica. O saber, porque não apenas denotativo, encontra assim na narrativa a sua linguagem veiculativa par excellence, já que a forma narrativa admite «uma pluralidade de jogos de linguagem» que escapa aos enunciados denotativos da ciência. No entanto, parece-me haver qualquer coisa de redutor na forma como o filósofo francês encarou a história popular, atribuindo-lhe sobretudo um papel transmissor do «grupo de regras pragmáticas que constitui o vínculo social». Lyotard fala nas narrativas populares como veículos de transmissão de modelos, mas refere igualmente o poderosíssimo efeito rítmico, por exemplo, das lengalengas infantis, relevando a cadência na prosódia dos adágios, dos provérbios, das máximas, como meio de efectivação dessas regras. A consequência disto será, grosso modo, uma cultura mais dependente do saber narrar do que da significação daquilo que é narrado. Ou seja, não importa o que se narra, importa é que se saiba narrar. As narrativas populares funcionam, assim, como uma espécie de mantras, cuja execução relega para plano secundaríssimo o significado dos sons pronunciados. É por isso que o bom narrador não é apenas aquele que lê, mas aquele que lê de determinada maneira, aquele que nos leva a aceitar a narrativa sem uma necessidade imediata de interrogação sobre o sentido do que está a ser narrado. Como disse, julgo ser demasiado redutor perspectivar a narrativa popular apenas sobre estes dois prismas, pois muitas vezes ela ostenta uma dimensão crítica dos próprios modelos sociais, quando não uma extensão à ruptura com esses mesmos modelos. O que se me afigura mais pertinente nos dias de hoje é pensar nos modelos da própria narrativa popular enquanto vinculativos de uma resistência à deterioração do saber. Cada vez mais reduzido ao seu carácter técnico, o saber que é hoje transmitido nas escolas, inimigo da reflexão, do tempo, da pausa, do ócio, da memória, escravo da prática, encontra nos modelos da narrativa popular um lugar de resistência à pesarosa ausência de referências, assim como um aliado subtil de práticas que podem optimizar os processos de concentração. É essa dificuldade de concentração, porventura resultante do culto do zapping, associado à prática das novas tecnologias, o que mais contribui, creio eu, para um desinteresse hoje generalizado por um saber que não seja meramente técnico, um saber que exija algo mais do que um uso eficaz do Copy & Paste, essa fabulosa e feérica firma das sábias luminárias que ameaçam tomar conta do mundo sob os desígnios de um facilitismo que não só se promove como se exalta em terra de chicos-espertos. Talvez algo que vem do povo possa ainda fazer qualquer coisa pelo povo. Não custa tentar.

3 Comments:

At 3:10 da manhã, Blogger grande said...

Ao ler-te não pude deixar de me lembrar das várias vezes que já ouvi referênciar, ou mesmo contar, os sketchs do Gato Fedorento (como dantes os do Herman e às vezes os dos Python ou um qualquer filme), para ilustrar um argumento. Tal como quando eu era pequeno ouvia os mais velhos começarem a contar uma história antiga...

 
At 11:49 da manhã, Blogger MJLF said...

Belos manguitos!
Maria João

 
At 12:29 da tarde, Blogger hmbf said...

grande, é muito bem lembrado. eu julgo mesmo que os gato fedorento têm sketchs óptimos para dar filosofia.

etanol, também acho.

 

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