Vivemos em democracia, logo você tem todo o direito de cagar no direito
Era uma vez um país muito democrático onde toda a gente dizia o que queria, como bem entendia, onde queria e quando pretendia. Nesse país, a liberdade de expressão não era apenas um direito, era, antes de mais, um dado adquirido, um imperativo categórico à maneira kantiana. Acontece que nesse país havia uma gentalha que se aproveitava da liberdade de expressão para cuspir na liberdade de expressão e usava a democracia para urinar em cima da bandeira da democracia. Basicamente, o que essa gente fazia era usufruir do que odiava com o intuito de destruir o seu usufruto para, posteriormente, fazer valer lá das masmorras da sua ignorância a valência dos seus ditames. Os democratas desse país olhavam para a coisa impávidos e serenos, ora ignorando, ora fazendo orelhas moucas, ora olhando para o lado, fingindo que não era nada com eles. Se os bandalhos lhes cuspissem para as fuças, os democratas desse país diziam: «cuspam, cuspam, estão no vosso direito». Se comiam com a urina dos bandalhos na tola, os democratas passavam as mãos limpas pelo penteado e logo proclamavam: «isso, isso, estamos em democracia, podem urinar à vontade em cima do meu penteado». Assim como Jesus que dava a outra face a quem lhe agredisse a primeira, os bons democratas do país muito democrático davam a boca a quem lhes comesse o cu. Tudo, obviamente, em nome da bela democracia e da intocável liberdade de expressão. É claro que existiam regras que era importante cumprir e respeitar, pois toda a democracia assenta no princípio das regras iguais para todos, das normas, das leis e dos decretos que garantem aos mais fracos igualdade nos juízos. Nada de discriminações nem atentados à dignidade individual, isso era impensável num país democrático. Seja como for, grupos de interesses foram-se reunindo nesse país muito democrático, grupos de interesses obscuros que começaram, muito lentamente, a falar ao nível das orelhas moucas dos ilustres democratas do país muito democrático. Certo dia apareceu um grupo de patrões que gritou, muito democraticamente: «viva a escravatura». Os empregados, como eram todos muito democráticos, ouviram e calaram. Depois surgiu um grupo de ateístas que advogava, com indubitável sentido democrático: «fogo às igrejas». Os padres e respectivos acólitos ainda tremeram, mas engoliram o sapo em seco, tudo em nome, obviamente, da incensurável liberdade de expressão. Vieram também grupos de gente rica chamando porcos aos pobres e até, imagine-se, grupos de pobres reivindicando a pobreza a quem a trabalha. Entre eles, um grupo de democratas com sentido de Estado, resolveu botar em letras grossas, num cartaz do tamanho dum estorvo, em plena praça pública, um basta à imigração, encimando um aviãozinho irónico, supomos que de uma empresa recuperada por um imigrante, que desejava a todos boa viagem de regresso aos lugares de onde haviam partido para a isto chegarem. Não sabemos se o aviãozinho tinha programado, no regresso, o recâmbio de milhares de portugueses espalhados pelos sete cantos do mundo; ninguém sabe também quais são os imigrantes que esse grupelho de burgessos quer ver fora do país, se os que vêm para cá construir as escolas e os hospitais e as estradas que todos frequentam, se os que marcam golos que todos aplaudem - à excepção de um grande democrata que assina textos muito democráticos com o nome de JPP -, se outros quaisquer que eles lá têm em mira. O que sabemos é que, em nome da democracia e da liberdade de expressão, essa gente pode continuar a insultar todos os imigrantes que se cruzem com o dito cartaz, assim como, de forma indirecta, todos os nossos emigrantes. Essa gente, esse grupelho, em nome daquilo que alguns estão convencidos ser a liberdade de expressão, pode pois continuar a urinar na tola da democracia e a cuspir o rosto da liberdade, que nós cá estaremos para, em textos mui dignos, bem elaborados, crónicas sabiamente respeitosas da constitucionalidade democrática, lhes baixarmos as calças à careca. Quando for tarde, avisem. Eu acho que já é tarde demais. Não se trata de medo, trata-se de não dar aos bois a liberdade que eles não merecem porque não sabem mais do que marrar.
6 Comments:
Bravo! Ainda há quem se indigne!
Idem!!!
É assim mesmo!!
JR
e o raio dos cartazes que ainda lá estão, mas existe muita estupidez em nome da democracia, quando dei aulas em Chelas aprecebi-me que existiam professores racistas na escola, mandavam bocas à emigração dizem coisas baixinho nas costas, se começam para aí a gritar, porra, que gentalha, deviam ser multados por cada descriminação e afirmação estupida que fazem, mas a estupidez é infinita e reproduz-se que nem coelhos.
Maria João
:)
Bom post, Henrique. Continua.
JMS
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