Fragmento #51 – Av. da Liberdade
Pouco tenho a constatar para além de que Lisboa de noite tem o céu azul – isso foi-me dito por um orgasmos Ferrari há muitos anos, se não nem reparava no assunto. O rio funciona como espelho e reflecte a luz na cidade, as calçadas são brancas até no escuro e encandeiam-me. Isso incide em alguns dos seus habitantes e pode-se observar em épocas mais agitadas como a estação do renascimento, bom, mas não vem ao caso, estou aqui sem dormir o que é óptimo, gosto da madrugada quando não prego olho; saí para um aniversário, os meus pêsames, estão todos mais velhos como eu e não os via já há 40 kg, um privilégio; fui à Mouraria, ao restaurante de um candidato bloquista para a junta de freguesia, tinha de ser um homem grave e afirmou: não espalhem por aí que isto existe, o meu bacalhau ganhou um prémio, está aqui pendurado, mas bacalhau só com marcação, nesta sala não entra toda a gente – gaita! Não entendo, eu nem consigo comer bacalhau, é muito fibroso, têm guardado para mim um pargo, privilégios gástricos, mas vingo-me no fim com uma mousse de chocolate com macieira – ou pensam que ando aqui brincar? Devagarinho entra, que me apertaram a drástica há pouco e desde aí vomito quase tudo, tenho que ruminar que nem uma vaca e fico envergonhada de comer em público, o que vale é que quando vomito consigo sair discretamente da mesa em direcção ao gregório. Bom, calho ao lado de um ex-Belas, lembro-me dele, mas são sempre tantos que os confundo; muito fechado o rapaz, bem tento que ele abra a boca sem ser para comer, mas é quase impossível; a aniversariante é demais, está mais nova com a idade e também ainda não escreveu a tese, é só rir; lembramo-nos do tio Leonel, um kantiano que a tratava por Emília – e chi patrão, agora na escola ela tem um chefe que é amiguinho do tio, eles propagam-se e reproduzem-se que nem coelhos; e conheço mais uma filósofa, só fala no Carlinhos, uma criança que a avisou de um teste com uma semana de antecedência – tem de ir fazer porque vai adorar! - Eu relato-lhe os diálogos com o mesmo Carlinhos no café, o homem sonhava em viver em Évora e eu alertava-o, não vá para dentro das muralhas, olhe que se torna uma alma penada; essa criança, um dia não resisti e disse-lhe preto no branco que escreveu um livro de poesia genial, mas os textos teóricos eram intragáveis – não se dizem estas coisas a um possível orientador, sou mesmo desbocada, mas ele era uma criança que nasceu na música, ainda não tinha chorado e já estava mergulhado naquilo, anunciou a morte de Ligeti em conferência pública – enganou-se, Ligeti fazia anos, o Bério é que tinha morrido. De qualquer modo, estava próximo, o aniversário é uma espécie de morte – Funerais? Rituais, calha-me uma historiadora na rifa, ela vai dizendo baixinho: os meus irmãos também são de história e o pessoal de história não sabe tudo, é mentira; adoro isso, ela sabe como a memória falha, como somos incompletos, eu também habito no tempo. Adormeço no Tejo Bar, pareceu-me pouco tempo, mas quando acordo avisam-me que dormi durante umas horas – nem dei por nada – não era motivo de preocupação, estou em casa nesta cidade; e apesar da metamorfose, tomam conta de mim, dão-me boleia porque sabem que até na Av. da Liberdade me posso perder – é já ali agora – habito esta cidade no tempo.
Maria João
Maria João
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