IMBRÓGLIO
Ando há dias a matutar nesta notícia de uma mulher, de 70 anos, acusada de um furto no valor de 3,99 euros, cujo julgamento poderá custar ao Estado 500 vezes mais que o valor do furto em causa. Casos destes, ao que parece, não são autênticas raridades entre nós. É claro que num mundo perfeito aquele julgamento não seria realizado, a mulher entregaria o que roubou ou o valor inerente ao objecto furtado e tudo se resolveria com a maior das facilidades. Todavia, o mundo em que vivemos está longe de ser perfeito. Imaginemos que a mulher era obstinada o suficiente para recusar a devolução do produto roubado ou da quantia em causa, imagine-se que a obstinação da cidadã era tal que colocava o Estado na posição de ter que decidir entre o julgamento ou o perdão. O que fazer? Em ordem de razão, o Estado não pode perdoar um furto, a mulher deve ser julgada, sob pena de, abrindo um precedente, ter o Estado de perdoar no futuro todos os furtos que não transcendam os valores das custas de uma acção judicial do mesmo género. Isto é inadmissível de todos os pontos de vista, justificando assim que o Estado avance com a acção mesmo sabendo ir perder dinheiro. Não sei se noutros casos haveria a possibilidade de a cidadão pagar as custas da acção com trabalho comunitário, mas neste caso a cidadã é uma mulher de 70 anos. Que trabalho comunitário pode ser exigido a uma mulher de 70 anos? O que me parece é que isto é um imbróglio danado acerca do qual apetece dizer que o bom senso, afinal, não é a coisa mais bem distribuída do mundo.
12 Comments:
Uma grande embrulhada, pois é.
Mas, por outro lado, partir do princípio de que uma pessoa de 70 anos não pode desenvolver trabalho comunitário é o mesmo que dizer que todas as pessoas com essa idade são socialmente inválidas, o que me parece um erro. (Nem estou a falar do caso desta senhora em particular que, pelo pouco que sei, é "muito doente" - signifique isto o que significar.)
Quanto à coisa mais bem distribuida do mundo, não é, de todo, o bom senso. Arrisco dizer que a coisa mais bem distribuida do mundo é a convicção de se ter bom senso. :)
Rute, pensei precisamente nessa crítica que me fazes quando estava a escrever o post. E a verdade é que eu próprio estive para me censurar. Do meu ponto de vista não se trata de pensar que uma pessoa de 70 anos é inválida. Bolas, basta pensar nesse caso extraordinário que é o Manoel de Oliveira. Mas a verdade é esta: é-me difícil pensar num trabalho comunitário que possa ser aplicado, enquanto pena, a uma pessoa de 70 anos. Não se trata de pensar numa mera ocupação, trata-se de um trabalho que deve configurar a noção de pena. O quê?
Haveria que perceber, primeiro e em concreto, qual poderia ser o contributo social da senhora.
Dependendo de quais as possibilidades, algumas sugestões imaginativas (digo eu): ir a uma instituição ensinar jovens a bordar a ponto de cruz, ou a fazer crochet, a fazer malha - não são coisas inúteis, principalmente numa altura em que se valoriza muito os acessórios feitos pela própria pessoa :) -; podia ela mesma bordar uma toalha, ou fazer um conjunto de naperons para utilização decorativa num espaço dessa instituição; podia ir contar histórias se soubesse alguma, ensinar algum jogo dos que já ninguém sabe jogar; se nada disto fosse possível, poderia sempre ajudar a regar as plantas que, acaso, estivessem em vasos...
Talvez nada disto seja viável, mas alguma coisa há-de haver. Ou teria de ser um trabalho exigente a nível físico? Não percebo muito disto, mas, para configurar a noção de pena, não basta que seja algo que o Estado entenda que a pessoa deve fazer - sem retribuição monetária - e não algo que a pessoa se dispõe a fazer por sua própria iniciativa?
3.99? E não há ninguém que se tenha oferecido para os pagar?!
Ó Rute, eu até concordo contigo. O problema é que assim o Estado arriscar-se-ia a ter muita gente a roubar produtos do género em troca de umas horas de crochet... :)
Sara, isso era como alguém pagar um crime por ti cometido. Tipo, tu roubas um carro mas não há problema desde que alguém se ofereça para o pagar. A senhora até devolveu o produto furtado. O que está em causa é o acto de roubar, não o produto roubado.
Isto é tramado, ando há dias a pensar nisto e não me resolvo. :)
Ó Henrique, se o Estado pode suportar que o processo custe 500 vezes mais que o valor do artigo furtado, porque é que não pode correr o risco de ter mais professores de crochet? ;)
eh eh eh Isso seria um estímulo ao furto. A mim até me parece bem. Aos comerciantes, não sei. :))))
Ora, não seria aplicável a toda a gente. Apenas a indivíduos em condições de fragilização muito específicas e, obviamente, que soubessem fazer crochet! :)
Para furto de produtos de baixo valor comercial, os comerciantes até preferem nem apresentar queixa, porque isso lhes sai mais caro do que a perda do artigo. Pelo que sei, o processo desta senhora só está a correr, porque a um dado momento foi chamada a polícia e houve registo do furto. O gerente do supermercado nem quis apresentar queixa.
(Para bem comum e alegria geral da nação, reivente-se o sistema penal!)
O problema é que como este caso há muitos outros, não iguais mas similares. Havendo estes casos, o importante é que se defina se é preferível avançar com a acção judicial ou não. Avançando-se, porque outra hipótese não me parece, para já, muito provável, teríamos um vasto leque de casos, pelo menos aqueles em que as custas são 500 vezes superiores ao prejuízo causado pelo acto punível, em que as pessoas saberiam que, perante a possibilidade de serem apanhadas a roubar, o mais que lhes poderia acontecer era… ficarem uns dias a praticar crochet ou actividade parecida. Se isto não é do domínio do absurdo, então não sei o que será do domínio do absurdo. :) Na melhor das hipóteses, está encontrado um método contra a solidão na velhice. Velhos deste país, toca a roubar cremes. Temos umas salinhas preparadas onde depois poderão cumprir as vossas penas a fazer crochet. :)
Também fiquei a matutar nisto e não sei bem o que pensar.
O roubo é um crime difícil de digerir socialmente. Enquanto qualquer indivíduo é capaz de matar, nem todos são capazes de roubar. Matar é animal, roubar é social. Mas o roubo tem gradações. Será o mesmo roubar pão ou leite e roubar um anel ou um creme de beleza? Há ainda a considerar o que leva ao acto: doença, a adrenalina do risco, miséria, etc.
Com isto quero dizer que nem todo o roubo deve ser encarado da mesma forma independentemente do valor em causa.
Não deixa, no entanto, de ser curioso que um cheque sem cobertura tenha um limite mínimo para ser passível de tratamento judicial e um roubo não tenha um tecto para o mesmo efeito.
Bem visto, Fernando.
'Condená-los porque erraram seria tolice, como diz Platão (Leis, XI). O que está feito não se pode desfazer; mas é para que não tornem a errar ou para que os outros não sigam o exemplo do erro.'
Montaigne in Três Ensaios.
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