ESPELHOS
Porque espelhos é o tema da próxima Minguante, pus-me a escutar o que a palavra me diz quando a pronuncio. Reflexo é a sensação mais instantânea que a palavra espelho me provoca, mas, logo a seguir, lembro-me de Narciso. A Narciso associamos a vaidade, o autodeslumbramento, o amor-próprio. Mas também podemos associar a Narciso a ingenuidade de quem, demasiado voltado sobre si próprio, perde o mundo de vista. Os espelhos podem ser o mundo a perder-se de vista. Como em Pieza para espejo I (1969), de Joan Jonas, o espelho prolonga determinada imagem, impedindo-nos o acesso ao que, na realidade, é o prolongamento daquilo que vemos. Não gosto de espelhos por isso mesmo. Os espelhos dão-nos o eco em retorno, são uma espécie de boomerang dos olhos, são uma parede que se intromete entre nós e o mundo. As pessoas não se encontram nos espelhos senão quando se espelham umas nas outras, conquanto este espelhar-me no outro seja a possibilidade de me ver reflectido na alteridade. Por vezes dizemos que gostamos de ler para sentirmos que não estamos sós, ou seja, para nos vermos espelhados, reflectidos, naquilo que lemos. Mas eu não me sinto menos só vendo-me multiplicado no mundo. Antes pelo contrário, sinto-me menos só sabendo que à minha volta existe uma imensidão de coisas e de seres bem diferentes de mim mesmo. O que nos torna a vida menos solitária não é o deserto nem o isolamento que os processos de identificação política, social, estética, cultural, religiosa, propiciam e promovem. É antes a adversidade do diferente, a multiculturalidade, o facto de haver quem pense de modo diferente de nós. Os espelhos como que ameaçam esta perspectiva mais ampla do mundo, do mesmo modo que serviram para ludibriar povos indígenas dando-lhes do mundo uma imagem que ainda não tinham, ou seja, a sua própria imagem. Vermo-nos constantemente a nós próprios pode cegar-nos dos outros, pretendermo-nos nos outros pode cegar-nos de nós próprios. Curioso como os temas se ligam quando não há espelhos a impedirem essa ligação. Por que é que toda a gente anda tão contente consigo (mas não com os outros)? «É que não existe um canalha que, procurando um pouco, não encontre canalhas piores do que ele, neste ou naquele sentido, e que, por isso, não arranje motivo de se orgulhar e de estar contente consigo próprio.» (Sonata de Kreutzer, Lev Tolstói) A não ser que passe a vida deslumbrado sobre si próprio, vendo-se ao espelho, penteando as suas mágoas, frustrações, rancores e ressentimentos, catando no couro os piolhos da inveja. Por isso mesmo, quando me acusam de ecumenismo, eu sorrio e penso: olha outro que só tem espelhos em casa. Por isso faço minhas, mais uma vez, as palavras de Giulio Carlo Argan: «a arte não é o reflexo ou a transposição em imagem de uma cultura superior e diversamente complexa, ou dos seus valores intelectuais ou morais, mas o processo mediante o qual se elabora uma cultura à parte, cujo fundamento é a percepção, cujos instrumentos são as técnicas, cuja função consiste substancialmente em saldar a experiência que tem do mundo com um fazer que visa mudar-lhes os vários aspectos, recriá-lo». Portanto, recriá-lo ou, diria eu, acrescentá-lo. A ilusão que o espelho nos fornece de um determinado espaço é do mesmo tipo da ilusão alimentada pelos ideais absolutos, pelo fundamentalismo das crenças, pelo que esta ilusão nos dá do mundo uma perspectiva única que está longe de ser a única perspectiva do mundo. Ideal seria que, como os vampiros, soubéssemos dos espelhos por neles nunca nos vermos reflectidos. Antes ausentes.
3 Comments:
que bem me soube ler este texto. Obrigada, Henrique.
Custuma-se dizer: "parece que não tem espelhos em casa"
eu acho que os "espelhos" onde nos devemos ver estão na "rua".
ok mais um texto onde me vejo reflectido :)
bem agora a sério, gostei bastante, tenho uma letra que fiz quando tinha uns 18 anos que se chama reflexo, em que a ideia subjacente é parecida com esta. Ver se a gravo, gostava muito dessa canção.
nelson
Obrigados.
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