16.8.07

INGMAR BERGMAN 1918-2007


Despeço-me hoje de Bergman, enquanto ouço The Seventh Seal na voz de um Scott Walker ainda muito easy listening, a entrar na década de 1970, fazendo o seu caminho na direcção da esquizofrenia. Sou bergmaniano dos pés à cabeça – escrevi aqui. E é verdade. Por vezes, pode não parecer. Mas é. Ao contrário da canção de Scott Walker, inspirada num dos mais tremendos filmes do realizador sueco, o cinema de Bergman nunca primou pela facilidade. Aliás, a música de Scott Walker também acabou por desembocar em mares dificilmente navegáveis. No cinema de Bergman há, contudo, uma pausa que nos impele à reflexão sem nos asfixiar. Por vezes tendeu para um registo mais ligeiro, ainda que muito raramente. Mesmo nesses momentos, é uma fusão entre a imagem e a palavra o que acontece. Por isso Bergman é poético, por isso o seu cinema é poesia, por isso ele é um dos grandes poetas do nosso tempo. Os seus temas são os temas poéticos por excelência: Eros e Thanatos, o tempo, Deus, a religião e essa coisa, que soa já tão antiquado referir, do sentido da vida. A propósito recupero um post que editei a 19 de Janeiro de 2005 – não recordo a data em que o escrevi pela primeira vez. É sobre Lágrimas e Suspiros:

Ernst Ingmar Bergman (Suécia, 1918) é um conceito que significa cinema. Em 1972 filmou aquele que é, quanto a mim, o filme mais paradigmático da sua obra: Lágrimas e Suspiros. É arriscado dizê-lo, talvez um pouco pretensioso, dada a proficuidade da filmografia bergmaniana. Contudo, não é isso que importa aqui reflectir. O que importa aqui reflectir é o vermelho, a poética desse vermelho vivo, cor de sangue, que aparece em evidência nesse filme. Cor de sangue e de fogo. Logo no início do filme, Anna (Kari Sylwan), a empregada, ateia o lume. Mas também cor de vida, do mistério da vida. Cor ambivalente, portanto. Tal como o filme de Bergman. As mais íntimas paixões humanas entram aqui em conflito, num ambiente frio e distante como só pode ser o dos solares aristocráticos. Agnes (Harriet Andersson, sublime) padece de doença muito grave, está moribunda. Aguarda que a morte lhe leve o sofrimento, a dor - palavra sublinhada, também no início do filme, quando Agnes se levanta da cama e escreve algumas frases no seu diário. Observamos toda a sua agonia. Acompanhamos as suas duas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann), nessa espera. E somos levados a sofrer tanto ou mais que elas o sofrimento do padecimento da irmã. O vermelho de Lágrimas e Suspiros é um vermelho forte, feminino. Lembro-me de Sylvia Plath: «I am a garden of black and red agonies. I drink them, / Hating myself, hating and fearing». Lá estão o vermelho e o negro, o sangue e o luto. Lá está o jardim onde Agnes recorda a mãe passeando, na busca de paz e de solidão. Lá está a agonia incomensurável de Agnes... e o ódio e o medo. Lá está a vida, «o peso do tempo». O ódio de Karin, personagem terrível, incómoda, porque tão cruelmente real. Um ódio-próprio tanto quanto é ódio aos outros, à vida. Karin vive distante dos afectos, não suporta o calor do toque humano. Agnes, numa das memórias que tem da mãe, recorda-nos que é preciso tocar para estar próximo. Karin mantém-se distante. Evita Fredrik, o marido. Evita Maria. «Não quero que sejas amável para comigo», diz-lhe. Mutila-se, sente prazer na dor, a dor é o seu refúgio. Maria é o medo, um claro medo da morte, do sofrimento. Refugia-se no amante, o médico de Agnes. Joakim, marido de Maria, tenta suicidar-se quando se apercebe da infidelidade da mulher que, numa daquelas cenas que só Ingmar Bergman sabe filmar, é desvelada pelo amante que lhe lê o rosto defronte a um espelho: indiferente, egoísta, indolente, impaciente... Mas repleta de medo, acrescento eu, um terrível medo de acabar só. Personagens patológicas, tão patológicas quão profundamente humanas. Resta-nos a pobre Anna, a empregada, fiel a Agnes antes e depois da morte. Reza pela filha, que Deus lhe levou para o céu. Num plano esquivo, fugaz, apercebemo-nos do berço mantido como se tudo ainda fosse vida. Porém, vazio. Quando Agnes morre, um padre vem a casa benzê-la. Pede a Deus que o seu sofrimento sirva para que o sentido das nossas vidas nos seja mostrado. O sentido dos relógios, do tiquetaquear dos relógios, que vão aparecendo e que se vão ouvindo ao longo do filme. Se o tempo tivesse cor, seria aquele vermelho do filme de Ingmar Bergman. Lágrimas e suspiros. Poderá alguém dizer que isto não é poesia?