BANDEIRAS
Olho a televisão e vejo bandeiras, bandeiras de várias cores, erguidas e movimentadas bandeiras. Olho-as com estupefacção, não entendo a razão das bandeiras. Nunca entendi. Mas começo a compreender que não existe grande diferença entre essas bandeiras e as bandeiras que anunciam o sucesso de um operador de telemarketing ou de um funcionário da McDonald's. Corrijo, não existe mesmo diferença alguma. A agitação das bandeiras, sejam elas agitadas em que condomínios forem, nada mais é que um sinal de presença e de entrega. Os bons funcionários agitam bandeiras, ansiosos que estão, como cães de Pavlov, de verem tocada a sineta do cargo. O que a maior parte dos funcionários ainda não descobriu é que o cargo já não está a cargo dos regentes, os próprios regentes são já funcionários de outras bandeiras, não as das causas nobres, como o bem comum, mas as das causas panasorbes, como sejam a "analgização" da carneirada. É ao serviço dessa analgia que estão os regentes de hoje. E a quem interessa ela? Interessa às corporações, ou seja, às bandeiras. São as bandeiras quem mais ganha com a analgia dos bandeirantes. De certa forma, a relação é a mesma que o adepto mantém com o seu clube. Se é sócio, paga quotas. Quer ver os jogos, paga bilhete. Torce, esmaga, grita, berra, invectiva, anda à porrada, para quê? Para ver a sua bandeira no lugar cimeiro do podium. E que ganha o adepto com isso? Que ganha ele com esse esforço? O direito a dizer: ganhei. Na verdade, não ganhou nada. Não ganhou nem perdeu. No entanto, convence-se de que a energia despendida na movimentação da sua bandeira é-lhe recompensada, como o valor de um investimento que se recupera, no gozo que lhe dá poder dizer, a pulmões cheios e peito inchado, que ganhou. E surge novamente, à superfície dos nossos males eternos, a voz de São Tomás Morus: «Por toda a parte onde a propriedade constitui direito individual, e onde todas as coisas se avaliam por dinheiro, nunca poderá organizar-se a justiça e a prosperidade social, a menos que chameis justa a sociedade na qual o que há de melhor é pertença dos piores, a menos que considereis feliz aquele estado em que a fortuna pública é presa de um punhado de indivíduos insaciáveis enquanto a massa é devorada pela miséria.» Que levante o braço quem discordar. Perante isto, os meus dois ficam em sentinela, destas palavras não me importo eu de ser soldado, mesmo que não faça delas bandeira. A ter que fazer bandeira de alguma bandeira, farei bandeira do fogo às bandeiras. Não me move qualquer compaixão pelos ditos inocentes, sempre tão avaros na responsabilização e tão dispendiosos no que toca à culpabilização. A esses, desejo apenas a peçonha das bandeiras que trazem ao peito, ao colo, enfiadas no cu, entaladas na garganta. Mas de um ponto de vista mais pessoal, inquietam-me a subvenção da letargia, da analgia, da indiferença, do conformismo, da promoção de autênticos velhacos mascarados de salvadores da pátria, pasto e repasto das tais corporações. E vêm-me à memória, como factos batidos, versos de Gregório de Matos, ou de Tomás Pinto Brandão, diga quem souber, que me fazem pensar: já era assim naquele tempo, haverá razão para supor que no meu possa ser diferente? Ora leiam: «Os Ministros de Justiça / que nunca a fizeram direita, / porque a valia respeita / pela puta, ou por cobiça, / o Demónio assim lhe atiça / este fogo em seus ardores, / juiz e corregedores, / letrados e escrivães, / alcaides e tabeliães, / todos vestem de um saial. / Este é o bom governo de Portugal.» Mas há mais: «Toda a mais canalha vil, / mercadores, vendilhões, / que estão ganhando milhões / com empregar um ceitil, / têm toda a graça gentil / para poderem roubar, / podendo-se isto emendar / com uns açoutes ou galés, / porque assim em que lhe pés / tenham menos cabedal. / Este é o bom governo de Portugal.» Em suma: a merda é a mesma, muda a consistência. Ponho-me no lugar dos descrentes, de mim para comigo indago: mas é isto a democracia? Haverá melhor? Tanto caminho andado para chegarmos a isto? Estamos mal, estamos bem? Por que está mal quem está mal? Por que está bem quem está bem? Lá dos fundos já ouço ecos do Chico: Vai trabalhar, malandro! E vou. Mas, como bom português, hei-de ir contrariado.
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