20.11.07

ESCLARECIMENTO

Devo esclarecer que nunca preparei as poucas intervenções públicas para as quais fui convidado com o pretexto de falar sobre os meus livros ou sobre obra alheia. É verdade que penso sobre o assunto antes do assunto transformar-se em acto, é verdade que fico ansioso, é verdade que muitas soluções me passam pela cabeça antes de a cabeça começar a bater na parede do auditório, mas o mais que preparo do que fica dito é uma ou outra ideia, um ou outro gesto, que muito vagamente concluo ser de interesse referir. Aconteceu assim no passado sábado, pelo que julgo importante aclarar algumas afirmações que poderão, de uma forma ou outra, ter ficado embaciadas pelo bafo ardente da vodka. A minha postura relativamente ao mundo editorial é muito simples de entender se tivermos em conta o facto, não fatídico mas real, de vivermos num país onde toda a gente conhece toda a gente, onde toda a gente que conhece toda a gente nada sabe sobre a gente que conhece, onde toda a gente que conhece toda a gente se arroga no direito de censurar, opinar, julgar sobre o nada que sabe de toda a gente que conhece. O país é, de facto, pequeno; o mercado dos livros é, de facto, pequeno; as pessoas, na generalidade, são, de facto, pequenas. É provável que sejamos um país de anões com grandes ideias, mas as grandes ideias, perdoem-me o realismo, não pagam as contas domésticas. Sendo assim, a vidinha tem, por questões de sobrevivência, que adoptar outros rumos que não sejam os da literatura. Não tenho, nunca tive, a ambição de viver do que escrevo, muito menos de viver da escrita (podia fazer concessões, pôr-me a escrever por encomenda, etc. e tal), assim como não desejo ser olhado como aquilo que não sou: um escritor. Escrevo, como dizia a outra, porque não posso deixar de escrever. Há qualquer coisa de físico na minha relação com a escrita que não sei explicar, só sei explicar que tudo o que escrevo me sai do corpo e é por me sair do corpo que tudo o que escrevo me torna, digamos assim, mais leve, como quem respira melhor. Daí que goste de identificar a prática da poesia (a poesia faz-se) com a respiração, não para atribuir um estatuto vital à poesia, não para conferir ao poético um lugar na hierarquia da sobrevivência que seria um lugar divinal, lugar esse que não reconheço a nada que não seja o que nos permite, como diria Ruy Belo, chamar de divinas a algumas coisas como o mar, o sol, a lua, os filhos, mas porque vislumbro na poesia, manifeste-se ela onde se manifestar, um lugar de respiração que não encontro noutras parte do mundo. Mas quanto a editar, quanto a editar o processo é mais complexo. Porque tenho esta perspectiva sobre o mundo em que vivo, prefiro, tanto quanto me seja possível, ser acolhido em projectos editoriais onde o factor humano esteja presente e seja facilmente identificável. Quando penso nas editoras que aprecio, nas editoras portuguesas, penso também nas pessoas que estão por detrás desses projectos. Mencionarei algumas delas para não me acusarem de ficar por meias palavras: & etc., Frenesi, Edições Mortas, Black Sun… são projectos editoriais que me habituei a admirar à distância por ver neles rostos que me habituei a admirar… à distância. Se é importante que um livro venda, muito mais importante é que esse livro chegue a quem está, de facto, interessado nesse livro. Que os meus dois últimos livros tenham sido publicados por pequenos projectos editoriais (OVNI e Canto Escuro), cada qual com as suas especificidades, a procurarem, muito arduamente, mondar os seus rumos, implicando isso um esforço pessoal, uma dedicação aos livros que está muito para lá de intuitos meramente comerciais e de sobrevivência monetária, embora esses sejam também intuitos dignos de conta, só me deixa ainda mais satisfeito. Porque é de facto aí, onde o humano ainda tem um lugar que o mercado não aniquila, que me sinto bem. Vender, para mim, não é primordial, assim como publicar também nunca foi. O que é realmente primordial, para mim, é escrever. E se me permitem a presunção, penso que a actividade neste espaço serve bem de prova ao que tentei esclarecer neste texto.

4 Comments:

At 7:42 da tarde, Blogger blimunda said...

entendo muito bem o que dizes e tiro-te o chapéu por não fazeres concessões

 
At 8:17 da tarde, Blogger ana salomé said...

é muito importante que alguém tenha dito isto.
é bom saber que há alguém capaz de dizer isto.
sobretudo, é bom saber que há alguém assim.

o importante é escrever.

se usasse, tirava-te o chapéu.

 
At 12:59 da manhã, Blogger Luis Eme said...

Também penso um bocado assim.

Mas irrita-me ver gente vulgar, ser empurrada para a fama, apenas por ser filho do "jaquim e da maria" (claro que têm sempre nomes mais pomposos).

Há para aí fretes, que são perfeitas obscenidades...

 
At 2:25 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Quando trouxeres o teu Cinzeiro nem sequer tocaremos nas palavras "mundo editorial".
Apenas serão servidas as tuas palavras.

 

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