27.11.07

«ESCRAVATURA LEGAL E ADOCICADA»*

A minha mãezinha bem me avisa, nada se faz sem trabalho, filho, e o dinheiro faz muita falta, ninguém vive sem dinheiro. Não é preciso ir à Wikipédia para saber que antes do dinheiro já havia o homem, que antes do homem havia outra coisa qualquer que agora não importa, que antes dessa outra coisa qualquer outra coisa haveria, o que, feitas as contas, nos permite concluir ser muito mais vasta a história do mundo sem dinheiro do que a história do mundo com dinheiro. Muitos homens sobreviveram sem dinheiro para que aqui chegássemos. Se aqui chegámos, é também porque sobrevivemos à custa de muitos homens. Muitos deles trocados por dinheiro. Houve um tempo em que os homens se tratavam como animais, vendiam-se uns aos outros em mercados do género do mercado de Santana. Agora é tudo bem diferente, valha-nos isso. Agora os homens já não se vendem uns aos outros, apenas se compram. Essa diferença é absolutamente determinante para que constatemos a melhoria geral da humanidade, a disseminação dos valores humanos, o respeito pelo outro, pela diferença, a questão da tolerância. A tolerância, a bendita tolerância, é o valor supremo nesta era de capitalismo globalizado. Em favor da tolerância, temos que compreender e respeitar os homens que se compram uns aos outros. É a tolerância que nos obriga, por imperativo moral, a aceitar que o trabalho pago seja pago como se o não fosse, pois o desemprego é intolerável, mais vale estar com o que fazer do que estar sem fazer nada, mesmo que ter muito que fazer seja tão rentável, por vezes menos, que fazer absolutamente nada. Salvas pois à tolerância e ao mundo do trabalho nestes tempos de luta contra os privilégios. À minha mãezinha ainda vou dizendo que o melhor era mesmo abrirmos um poço, defecarmos para a fossa, cultivarmos as nossas batatas, produzirmos o nosso vinho, tratarmos das nossas galinhas. Mas ela diz-me que não. Como pagaríamos depois a gasolina, o gás, a água – esse bem de todos que enche os bolsos a alguns -, a electricidade, as telecomunicações, o seguro do carro, as despesas de manutenção da conta no banco? Como é que pagaríamos todos esses bens essenciais? Sabemos que o consolador conforto sai caro, e, para quem não pode ou não sabe ou não quer, sai assim a modos que desconsolado. Vivemos em tempos de desconsolado consolo. Somos escravos do conforto sem o qual já não sabemos viver, nem podemos. A «lei, as políticas, as polícias, os inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão», por ordem que não minha, pura e simplesmente não deixam. Daí que valha a pena ler este parágrafo de António Barreto e pensar no que é ser livre dentro do capitalismo globalizado: «Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa os computadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos e matérias-primas industriais e quem não quer ser igual a toda a gente está condenado. Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm Estado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados cientistas do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela carismática do Ministro da Economia e da Inovação, Manuel Pinho; e agem através do pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas certamente a mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel da ração e pelos impérios do açúcar». A ver se não me esqueço de dizer isto á minha sogra, cujas galinhas criadas nas traseiras lá de casa podem, a qualquer momento, provocarem-nos uma terrível indigestão.
*Título respigado aqui.

3 Comments:

At 4:52 da tarde, Blogger Filipe Guerra said...

Obrigado, eu não me explicaria mlhor nem com tanta ironia.

 
At 9:18 da manhã, Anonymous Anónimo said...

excelente.

abraços


Fuser

 
At 12:20 da tarde, Blogger hmbf said...

agradecido
a ambos...

 

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