31.3.08

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #28c

UM RESTO A CONTA-GOTAS

(CONTINUAÇÃO)



são quatro e quarto e o fumo do cigarro
fugindo pela janela

até ele foge de mim como aquela
ranhosa da frente de bandeira
nacional à varanda que não alugou
o anexo ao caboverdiano por ser preto

preto é o gato do ourives que é mais
bem tratado que muitos imigrantes
neste quintal a ficar cada vez mais
de castanholas e sevilhanas

a rata da mulher da frente se a tem
é branca como a pele da sua maldade
que é um diamante eterno

bocejei à passagem das quatro e meia
levanto-me da febre da flor de lótus
e vou urinar às portas de Berlim
vejo traineiras e arrastões
da nossa frota pesqueira perdida
vendida a esta Europa traficante

puxo o autoclismo e fecho os olhos
para não ver o mar
sem peixe algum algum dia

uma tempestade se ergue
das funduras da minha cabeça
tudo por que me bati na vida se afunda
nestes dias sem amor e sem chão

que o tempo barra
os destroços da minha história
e desta terra que foi um país
e eu um agasalho para o teu coração

são quase quatro e cinquenta e não paro
de contar as passadas do tempo a fugir
e há um resto duma sombra mutilada
a voar na outra margem

é demoníaca esta espera
pelos primeiros raios da aurora

é um tempo perdido
como perdido é o tempo da espera
pela morte a tocar saxofone à porta
dos quartos emprestados onde durmo
sem morada e sem o beijo dos deuses

nunca mais voltarei a casa

perdi-a quando os corvos te levaram
e porque nunca mais te verei
nunca mais terei casa
a casa

nem junto daquela lua onde nasceu
um lírio no céu nessa noite
em que se evaporou a janela
do abrigo em meu peito

quando ontem procurei a linha do horizonte
e a encontrei morta percebi já estar
a caminho do abismo do invisível

crio barulhos à minha volta
para não ouvir as gargalhadas da solidão
paro

e volto à janela com o corpo
duma esferográfica e olho através dela
o Cristo-rei ao longe aponto acerto
a mira do desejo e disparo a bazuca
com o olhar demolidor

agora já não mora lá
o causador de vómitos para outros

antes de mim e para mim

bateram as cinco e entre as mãos
amparo o meu coração tombado
na guerra dum dia mal afortunado

outro cigarro e recordo
as escamas caídas nos campos
de batalha dos abraços dos falsos

vou à janela tirar a roupa da roldana
e não há roldana nem roupas

somente uma nuvem enamorada
pelo grito do abutre a naufragar
no fumo do meu cigarro


(CONTINUA)


Jorge Aguiar Oliveira