29.3.08

O caso do holandês rastejante

In A Terceira Noite.

Rui Bebiano é uma das vozes da blogolândia lusa que mais gosto de ler. O post para o qual chamo a vossa atenção é sobre Fitna, um vídeo ranhoso que um deputado holandês achou por bem fazer. O tema do vídeo ranhoso é o Islão, ou, melhor dizendo, esse lado obscuro do Islão que tem alimentado fundamentalistas de toda a espécie com consequências nefastas de todos conhecidas. Não discutirei o vídeo, apenas me parece um elemento de propaganda tão fanático, parcial, arrogante e preconceituoso quanto o discurso dos crentes de Alá ali representados. A minha tese nestas matérias é voluntariamente simplista. Sendo ateu, julgo que o mal não está nesta ou naquela religião mas nas religiões em si. Não julgo que o mal esteja nos homens, mas sim na forma como se pretendem organizar e reunir reduzindo-se, enquanto indivíduos, a criaturas de um ser improvável: Deus. Como também não quero parecer fanático, concedo que Deus, existindo, seja muito bonzinho e pacificador, inspirador de almas puras, angélicas, santas, amigas do seu amigo. Deus, a existir, há-de sentir nojo desses fanáticos que se julgam seus representantes, sempre uma minoria com enorme influência sobre largas franjas da população. Não há propriamente uma solução para estes problemas. Teríamos que deixar de ser humanos, teríamos que deixar de ser sensíveis, teríamos que deixar de ter medo, emoções, como naquele filme algo ridículo com a Nicole Kidman, não sei se viram, o The Invasion. Só deixando de ser humanos, deixaríamos de conferir a Deus a ordem das nossas vidas, o pulso do nosso destino, pois Deus e as religiões, enquanto modos de estruturar a fé nesse desconhecido, é intrinsecamente humano. Isto tudo para dizer que, quanto a mim, o mal está na forma como os seres humanos prescindem de si próprios em nome de uma crença, em nome de uma missão fundamentada em crenças deveras improváveis, em nome de modos de vida que se pretendem impor a outros modos de vida. Há pessoas que preferem acreditar no paraíso a acreditarem que estão vivas. Que podemos nós fazer contra isso? Nada. O melhor é mesmo deixá-las acreditar no paraíso, seja ele composto por vastas praias luzidias, um silêncio pacificador ou muitas virgens malucas à disposição dos desejos de cada um. O que não podemos deixar, e isso já é uma questão de indivíduo para individuo, pelo que o melhor seria dizer o que não posso deixar, esperando que outros, como eu, digam o mesmo, é que alguém me imponha a sua fé, a sua perspectiva sobre o mundo, as suas crenças e os seus deuses como sendo os únicos possíveis, legítimos, aceitáveis. Às vezes também me passa pela cabeça que o melhor seria dar cabo da vida de todos os fanáticos, sejam eles islamistas, católicos, judeus, comunistas, etc. Dava-se cabo dessa gente toda e o mundo seria muito melhor. Mas este pensamento é uma contradição em si mesmo, pois ele faz de mim um fanático anti-fanáticos. Este pensamento decreta a minha sentença de morte. Faz de mim um outro que não eu, faz de mim um estranho em mim, como no filme de Neil Jordan, The Brave One, com a Jodie Foster. Não tem qualquer sentido, justificação, lógica, coerência ser contra fanatismos denotando um estúpido fanatismo. Venham então as minis, os beedies e sejamos todos muito felizes nas graças da mãe natureza. Foi ela que nos fez, há-de ser ela a levar-nos. Todo este palavreio inconsequente não pretende comentar o post de Rui Bebiano para o qual chamo a vossa atenção, pretende apenas introduzi-lo. Deixo, no entanto, um excerto com negritos meticulosamente seleccionados por mim. Espero que Rui Bebiano não me leve a mal a ousadia, ela tem na sua origem uma boa intenção: fazer-nos pensar como, por vezes, nós próprios, sem querermos e nem sequer nos apercebermos, enfermamos dos defeitos que detestamos nos outros. Corrijo: o problema não é necessariamente nosso, mas da forma como articulamos as palavras quando falamos de assuntos tão dificilmente abordáveis. Ora vejam:

Mergulhados há séculos na insciência, na miséria e na submissão - que Enzensberger considera ter sido agravada quando da recusa da revolução cultural determinada, na Europa, pela invenção da tipografia -, afastados de um debate aberto sobre o mundo contemporâneo, a sua diversidade e as suas oportunidades, dependentes de tecnologias que são forçados a comprar, eles têm sido presa fácil dos tiranos e dos exaltados, para os quais a missão apenas estará concluída quando a sua concepção paranóica e medieval do mundo vingar sobre o planeta.
É certo que o radicalismo islâmico não pode ser identificado com o Islão no seu todo, e que é dirigido por minorias que apenas se representam a si mesmas. Mas é já um fenómeno de massas, e em crescimento - basta olhar para a dimensão das manifestações de rua que assumem as suas palavras de ordem - em relação ao qual é preciso definir uma intervenção que não deve apoiar-se na errada noção de que os seus responsáveis são uma ínfima minoria e que existe uma opinião moderada que acabará por isolá-los. Uma intervenção que passa pela defesa intransigente dos valores de tolerância, liberdade e laicidade que o mundo de matriz iluminista – hoje crescentemente miscigenada com diferentes influências, é certo e é bom – deve preservar e partilhar, no diálogo com o outro, enquanto conquistas que lhe permitiram um dia começar a superar o estado de barbárie.

Impõem-se, então, algumas dúvidas: os responsáveis pelo radicalismo islâmico são ou não minorias? Como é que se pode dialogar com o outro defendendo intransigentemente uma das perspectivas em diálogo? Esses que há séculos estão mergulhados na insciência têm sido presa fácil de quem: dos tiranos que se impõem ou foram impostos entre eles, dos tiranos do lado de cá, dos oportunistas que, nada fazendo contra “a insciência dos outros”, aproveitam-se dela em benefício próprio? E, já agora, olhemos um pouco para nós próprios. Que exemplo temos nós a dar a esses que, afastados de um diálogo aberto sobre o mundo, há muito nos vêem a dialogar sobre esse mesmo mundo de um modo fechado, ou seja, intransigente?