INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #57
A LI E A LU
O comboio circulava na borda do prato da sopa
quando miúda descarrilou as carruagens
com a colher para os agriões e o arroz.
Esta é a Li. A madrasta deu-lhe uma chapada
vermelha na face de sobremesa. Danada
conteve a respiração num contra-ataque
e desmaiou sendo levada para as urgências
do hospital. O inesperado do improviso passou
a artimanha com resultados triunfantes pelos
anos, até aos dias dos namoros e maridos.
Se não me levar ao Egipto eu... se não
me oferecer o jipe não lhe dou mais beijos!
Os hipnotizados palermas a prazo foram sugados
até ao último sopro da conta bancária pelo assobio
da serpente que ao cuspir de desprezo o verme,
partia para outro, para outras chantagens.
Sempre disse que Irei como um cavalo louco,
do Arrabal, e Eraserhead do David Lynch,
serem os filmes que adoraria ter realizado.
Nunca quis chegar à verdade de coisa alguma
a Lu. Vivia como uma macaca na floresta
das dúvidas, para lá do olhar envidraçado
escorrendo perguntas carnívoras. Seriam todas
as mortes noites escuras ou palavras em gesso?
Nascerá dentro de cada morte outra morte?
Morando a poucos metros da memória do Botto,
só queria voltar a Lisboa quando cobrissem
a Estátua do Marquês com um enorme preservativo
e o povo celebrasse em torno do falo da cidade
o amor celeste. No Rossio se vendessem ramos
de seios de várias cores em cetim e cera,
como se fossem manjericos. Nas secretárias
dos funcionários da vidinha, os pisa-papéis
seriam falos com asas de borboleta e um beijo
fermentado com amor fosse tão normal
como um acordar para a vida.
Só queria voltar quando o cérebro fascista
estivesse dentro dum frasco num museu.
Antes de vestir a revolução cultural chinesa
nos anos 70, sonhara ser cisne bailarino
de Tchaikovsky, cantando a Carmina do Orff
na banheira, até chegar o Bach de braço dado
com o namorado. Nos 80, curtiu Guns N’ Roses,
chorando ao ver M. Butterfly do Cronenberg.
A Li e a Lu conheceram-se no Memorial Bar
engatando desde logo mútuos desejos cinéfilos
de realizarem filmes colados a desgraças como
os beijos dados nas películas made in Bollywood.
Em casa consumia-se mais coca que farinha
para bolos. Nojenta visão eram elas lambendo-se
pálidas à matinée. Uma esfera de metal na língua
e uma ursa menor brilhante na orelha da Lu
mais a tatuagem foleira de dois bambis no cimo
duma montanha nas costas da Li, eram sinais
de tribo e do tempo. Quilómetros de película
de seringas e limões do Casal Ventoso,
misturadas com paixonetas lésbicas nuns
vãos de escada porcos de escuro em Xabregas,
nunca chegaram a ter um fim de montagem.
Muitos túneis do cérebro metendo água
e a memória afogando-se no desalento
dos farrapos de ideias com dislexia.
Decidiram viajar para o interior da Colômbia
com o objectivo de realizarem o perseguido guião
das suas vidas. Ao desaparecerem da Arrentela,
venderam os piercings, as correntes e os blusões
de napa, por irem ser outras, quando pusessem
o pé no avião e dissessem adeus
ao tempo dos amargos dos subúrbios.
Era Maio e a coruja cantando possuía a noite
dos ponteiros dos relógios
murmurando tempos de morte.
Jorge Aguiar Oliveira
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