AMBIENTE RELIGIOSAMENTE AUSTERO
Por ambiente religiosamente austero entendo um ambiente onde as verdades de uma religião são impostas como uma obrigação inquestionável, secando a liberdade e congelando a interrogação. Nunca vivi num ambiente com tais características. Venho de uma família mais interessada nos valores materiais do que nos valores espirituais. O meu pai jamais mostrou interesse em Deus, preferindo submeter-se à ditadura do trabalho. A minha mãe acredita muito à sua maneira na palavra do Senhor, vai de vez em quando à missa e crê em alminhas do outro mundo. Fui baptizado, andei na catequese, obrigaram-me a fazer a primeira comunhão. Recordo-me de fugir às sessões de catequese para alugar livros numa biblioteca itinerante da Gulbenkian que parava junto à igreja. Fiz a primeira comunhão contrariado, sentimento patente no rosto capturado pelas fotografias do evento. Há quem julgue que aquele rosto era uma reacção à roupa que me tinham obrigado a vestir - calças bege, casaco de malha azul-cueca, uma camisa branca e uma gravata azul-escuro. Na verdade, era antes por ter sido obrigado a confessar os meus pecados. Sempre me causou aflição ver pessoas a sacrificar a vida na Terra com os olhos postos numa outra vida improvável. Interpreto esse sacrifício como uma aposta, pelo que vejo uma espécie de jogo na fé com que alguém se entrega a um dogma religioso. Não acreditando que Deus exista, coloco por vezes a possibilidade d'Ele existir e concluo que, a existir, o melhor é ser-lhe indiferente. Ele saberá o que fazer com a minha indiferença. Prefiro apostar que, a existir, Deus é uma entidade sábia e não uma entidade interesseira. Um sábio conseguirá distinguir os que foram bons indiferentemente daqueles que apenas o foram interessadamente. Mas parece-me muito mais… plausível… que Deus não exista, ou então que seja diferente daquilo que as religiões apregoam. Pensar Deus como o criador de todas as coisas, uma entidade omnisciente e omnipresente – atributos que lhe são reconhecidos pelos seres humanos -, retira a Deus a preciosidade da dúvida e sobrecarrega-o com uma monstruosa responsabilidade. Ao patrocinarem ambientes religiosamente austeros, as pessoas como que se demitem de ser pessoas, remetendo para Deus a responsabilidade de todas as suas acções. Matam… em nome de Deus, castigam… em nome de Deus, excomungam… em nome de Deus, etc. No fundo, querem substituir-se a Deus. Em ambientes desse género, mais do que ser-se humano, assumindo livremente todas as dúvidas, imperfeições e paixões da humanidade, importa ser-se servo de uma verdade construída na base da fé. Talvez todas as verdades se construam na base da fé. Seja como for, acredito mais em verdades construídas na base da fé nos fenómenos materiais do que na base da fé em abstracções do espírito. O que não deixa de ser paradoxal, já que este simples texto só foi possível graças a uma fé inabalável nas abstracções do espírito. Daqui retiro que não posso acreditar tanto neste texto como acredito, por exemplo, na inexistência de Deus.
2 Comments:
Não consigo deixar de vir ao seu blogue.
Não raras vezes, como esta, encontro algo que, se capaz fosse, poderia ter sido dito ou escrito por mim.
A minha forma de entender o fenómeno religioso enquadra-se bestante em tudo aquilo que, na minha opinião, tão brilhantemante escreveu.
Cumprimentos.
Muito bom!
abraço
(5ª vou fazer as fotos eh eh )
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