ENTREGA INCONDICIONAL
Nunca ninguém se entrega incondicionalmente a nada. Há sempre uma condição, por mínima que seja, a justificar a entrega. O suicida entrega-se à morte esperando que a morte o liberte da vida. A condição da sua entrega é ver satisfeito o desejo de morrer. Há várias histórias, algumas bem negras, de gente que passou a vida a tentar suicidar-se infrutiferamente. Porque a morte nunca quis nada com essa gente, essa gente nunca mais quis nada com a morte. Aqueles que se entregam incondicionalmente a Deus esperam do seu Deus o reconhecimento da sua entrega. Não falarei sequer do fanático religioso que aguarda as virgens no paraíso, de tão óbvio ser o interesse que lhe contamina a submissão. Falo das pessoas que regem os seus comportamentos segundo preceitos supostamente sagrados. Vão à missa, rezam, arranjam as campas dos mortos, ajudam os ceguinhos a atravessar a estrada, dão esmola aos pobres, etc. Tentam não desobedecer a Deus como a mulher de Adão, confessando todos os crimes ao contrário de Caim (o qual saiu à mãe). Será isto uma entrega incondicional? Não, a condição desta entrega é simples de perceber: servimos-te, Senhor, porque esperamos de ti a ratificação da nossa bondade. Abro aqui um parêntesis: o Senhor tem muitos rostos, na vida quotidiana pode ser o patrão, o ídolo, o crítico literário, o político, o administrador, alguém influente. Mas Deus, que começou logo por arrepender-se (a palavra é mesmo esta) de ter criado os homens, e por isso lançou sobre a Terra um dilúvio que, para mal dos nossos pecados, não arrastou também Noé, a mulher de Noé, os filhos e as noras de Noé para o mundo dos finados, sabe bem que não há bondade nos seres humanos que valha o mínimo investimento. Por isso os condenou a viverem uns entre os outros neste inferno de interdependências que obriga o mais nobre dos seres a curvar-se perante o mais execrável dos idiotas. É isso que acontece, invariavelmente, com os tontos que crêem entregar-se incondicionalmente por amor. A condição da suposta entrega incondicional de uma mãe às suas crias pode ser, na mais radical das assumpções, a consciência tranquila do dever cumprido; a condição da entrega de um amante ao seu objecto amado é o desejo, quando não a ambição, de se sentir no lugar do seu objecto. Como o cientista que, muitas vezes, gostava de se metamorfosear no seu objecto para o poder sentir por dentro, o amante ambiciona metamorfosear-se em amado. Por isso ama. A condição do seu amor não é sequer a correspondência, é antes a mórbida presunção de uma metamorfose tão absurda quanto eu acordar amanhã transformado em Gregor Samsa.
1 Comments:
Parece que não, Henrique. Acreditando no Cristo, direi que só ele. Quanto ao resto: há lampejos, às vezes.
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