11.9.08

O PRE-JUÍZO DA BONDADE

A importância dos factos históricos varia conforme o significado que têm para quem sobre eles incline o pensamento. Há quem atribua muita importância aos atentados perpetrados em solo americano no dia 11 de Setembro de 2001. Todos nós assistimos em directo ao horror vivido na cidade de Nova Iorque naquele dia, sendo ainda hoje inconcebível que tal possa ter acontecido daquela maneira. Fazemos questão de o recordar não apenas por se ter tratado de um facto histórico significativo, mas porque o pudemos viver com uma intensidade mediática incrivelmente perturbadora. O bombardeamento de Dresden, com Hitler já vencido, o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasaki, com o Japão já derrotado, são factos históricos muito mais significativos que o tempo se encarregou de arrumar na prateleira dos recalcamentos. Temos hoje sobre estes factos uma distância que ainda não adquirimos sobre os atentados ao WTC, por isso lembramos Nova Iorque e esquecemos Dresden, classificado por Kurt Vonnegut como “o maior massacre na história europeia” (Cf. “Um Homem Sem Pátria”). Não obstante, importa lembrar as palavras de um relatório apresentado por uma comissão das Nações Unidas pouco antes dos ataques de 11 de Setembro: “Na aldeia global, a pobreza de outrem rapidamente se torna um problema nosso: falta de mercados para os nossos produtos, imigração ilegal, poluição, doenças contagiosas, insegurança, fanatismo, terrorismo”. O mundo ocidental sempre fez orelhas moucas a estes relatórios. Dos tempos da escravatura à actualidade, passando pelos anos da colonização, a história é fácil de resumir: pela força das armas e com o apoio da ciência, o Ocidente tem explorado até ao tutano os chamados países do “Terceiro Mundo”. Nós sempre fomos o “mundo civilizado”, eles continuam a ser, a nossos olhos, uma boa fonte de rendimentos. É esta, pois, a melhor data para lembrar o que as imagens inesquecíveis dos aviões a colidir com o WTC nunca hão-de mostrar:

Uma «avalanche», uma «inundação» — foram estas as palavras utilizadas para descrever a reacção aos apelos lançados a favor das vítimas dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Três meses após o desastre, o total angariado orçava os 1,3 mil milhões de dólares. Desta quantia, segundo um inquérito do New York Times, 353 milhões de dólares revertiam exclusivamente para as famílias dos cerca de 400 agentes da políica, bombeiros e outros profissionais que morreram a tentar salvar vidas. Isto representa 880 000 dólares por família. As famílias dos bombeiros falecidos teriam tido um bom auxílio financeiro, mesmo que não tivesse havido donativos. Os cônjuges receberiam pensões concedidas pelo estado de Nova Iorque que equivaleriam aos salários dos defuntos e os filhos teriam direito a bolsas de estudo integrais para a frequência das universidades estaduais. O governo federal ofereceu mais 250 000 dólares às famílias dos agentes da polícia e dos bombeiros falecidos em serviço. Saber que as famílias recebem perto de 1 milhão de dólares em dinheiro vivo por tudo aquilo pode muito bem deixar-nos a pensar que há aqui qualquer coisa estranha. Mas não foi tudo. Após ter sido inicialmente atacada por planear, com sensatez, reservar algum daquele dinheiro para necessidades futuras, a Cruz Vermelha Americana resolveu assumir a atitude oposta e desistiu de fazer qualquer tentativa no sentido de analisar as necessidades de ajuda dos potenciais recipientes. Limitou-se a traçar uma linha ao longo da baixa de Manhattan e a oferecer a todas as pessoas residentes para lá dessa linha o equivalente a três meses de renda (ou, caso estas fossem proprietárias dos apartamentos que habitavam, três meses de hipoteca e condomínio), mais as mensalidades dos serviços públicos e a alimentação, bastando para tal que afirmassem ter sido afectadas pela destruição do World Trade Center. A maioria dos residentes na zona para lá da linha não foram deslocados nem evacuados, mas, ainda assim, foi-lhes oferecido o pagamento da hipoteca ou da renda dos respectivos apartamentos. Foi mesmo dito a uma mulher que tinha direito ao reembolso das despesas com tratamento psiquiátrico, apesar de a senhora ter esclarecido que já andava em tratamento antes de 11 de Setembro. Os voluntários da Cruz Vermelha montaram umas mesinhas nos átrios dos edifícios de apartamentos luxuosos em Tribeca, onde moram analistas financeiros, advogados e estrelas de rock, para informar os residentes acerca da oferta. Quanto maior fosse a renda paga, mais dinheiro recebiam. Algumas pessoas chegaram a receber 10 000 dólares. A Cruz Vermelha reconheceu que o dinheiro estava a ir para pessoas que não precisavam dele. Nas palavras de um porta-voz, «Num programa deste tipo não vamos emitir juízos relativamente às necessidades das pessoas.»
Na altura em que os terroristas planeavam o ataque, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) preparava a publicação do seu relatório referente a 2002:
The State of the World’s Children. Segundo o relatório da UNICEF, enviado aos meios de comunicação social a 13 de Setembro, morrem anualmente mais de 10 milhões de crianças com idade inferior a 5 anos devido a problemas evitáveis, como subnutrição, água contaminada e inexistência dos cuidados de saúde mais básicos. Uma vez que 11 de Setembro de 2001 foi provavelmente um dia como todos os outros para a maioria das pessoas desesperadamente pobres do mundo, podemos calcular que tenham morrido perto de 30 000 crianças com menos de 5 anos nesse dia, de causas evitáveis — cerca de dez vezes o número de vítimas dos ataques terroristas. Não houve qualquer «avalanche» de dinheiro na UNICEF na sequência da publicação destes dados.

Peter Singer, Um Só Mundo - A ética da globalização, trad. Maria de Fátima St. Aubyn, pp. 207-209, Gradiva, Fevereiro de 2004.

Nota: agradecido ao manuel a. domingos por me ter corrigido Nassões para Nações. Não me perguntem, deve ser do fim do mundo.

1 Comments:

At 10:40 da manhã, Blogger Luis Eme said...

no minimo dá que pensar, o que se faz com o dinheiro, ou como se desperdiça o dinheiro...

 

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