10.12.05

Eu, quem?

Fernando Pessoa simboliza o virtual melhor do que qualquer Playstation. O virtual, digo já, sempre existiu, porque a primeira coisa (suponho que tenha sido assim) já era outra coisa. A sofisticação crescente do universo é um movimento de virtualização (a invenção da linguagem e do livro são dois passos significativos deste «movimento»: falar é dizer mais do que o que sou (ainda que me saiba a pouco o que consigo exprimir) e ler é poder tomar conta de ideias de alguém que apesar de não estar ali se torna meu. O virtual gera muitas vezes reacções do tipo: as pessoas deviam ser mais simples, estar mais perto da natureza. Ora, não podemos esquecer-nos que sentir «saudades» de alguém (por exemplo) só é possível por causa desse gesto de virtualização que consiste em tornar presente algo que não está no aqui e no agora. Só somos o que somos, sentindo, pensando, porque nos virtualizámos constantemente até chegarmos ao que somos hoje (mas claro que se podem criticar as formas sociais que levam a que se contacte mais por telemóvel ou email do que «ao vivo»…)
E se digo tudo isto é porque: Pessoa percebeu, como muito poucos, que escrever é ser outro (porque ser já é ser outro). Percebido isto, dedicou-se a ser outro exuberantemente (porque o era e tinha a consciência disso, e tinha também a consciência de estar tendo a consciência disso).
A literatura (e não só) tende à despersonalização. Os textos do futuro serão colectivos e portanto sem autoria nomeável. Seremos textos hiperlincados uns dos outros, lugares de passagem, rizomas. Circularemos pela memória de outros sem identidade (fixa).
A despersonalização que Fernando Pessoa conseguiu foi tímida: ele ainda sentiu necessidade de identificar os vários heterónimos, de os nomear. Isto tornou a traição à unidade aceitável aos seus olhos e aos olhos dos leitores. Não era preciso tanto nome: bastava-lhe ter assinado Fernando ou não ter assinado nada.
Finalmente, Fernando Pessoa caiu num relativismo ontológico que não lhe permitiu extrair lições significativas no plano ético: o que fazer se no Infinito todos os comportamentos se equivalem? Quando tudo é igualmente bom e mau? Por que é que tu estares aqui há-de ser melhor do que tu não estares aqui? E precisamente por causa disto foi capaz de dizer (ou dar a dizer): « Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo»…
Rui Costa, in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano XXV / N.º 918, de 7 a 20 de Dezembro de 2005.