9.12.05

Fragmento # 23- Ícaro

O pianista portou-se muito mal quando me acompanhou a mim e ao coro no casamento, fartou-se de meter pregos. Foi arrogante, ainda teve a lata de dizer que não tinha estudado as peças, mesquinho mesmo. No primeiro ensaio mandou vir comigo, resmungou porque ia trabalhar com “amadores”, armou-se em esperto, pediu mais dinheiro para a viagem; eu a pensar que estava a contratar um profissional, confiei nele, dei-lhe as partituras com antecedência. Ele deve ter pensado que ia acompanhar uns membros do coro de S. Amaro de Oeiras... afinal, profissional foi o coro, todos sabiam e tinham estudado as peças e ele a meter pregos por todo o lado. É claro que quem assistiu adorou, agora nós que estávamos a cantar ali ao lado dele, que pastelão, o Gloria de Vivaldi devagar para não se enganar? Telefonei-lhe para lhe chamar a atenção, que se devia ter empenhado mais e ele a resmungar que lhe tinham pago pouco. Expliquei-lhe que foi pago com o preço habitual para estas coisas, o dinheiro não era meu, eu tinha era ficado encarregue de tratar da música para o evento. Disse-lhe que se ele se tivesse empenhado mais, ainda o chamavam para trabalhar noutra ocasião, mas assim... e a dizer em alto e bom som que não tinha estudado as peças para quê, puxar os galões da leitura à primeira vista? Deve achar que tem dons divinos... Ai estes católicos, dizem que são cristãos antes de mais nada, não admitem ser humanos com falhas, como todos os humanos, ainda acham que os outros são estúpidos... a muito custo admitiu que devia ter estudado mais, mas continuou a resmungar. Depois, telefonou-me e fomos beber café. Dei-lhe muita pancada, ele a custo caiu em si, disse que devia ter estudado mais e que tinha estado no Algarve em banhos, por isso não praticou. Mas também criticou o facto de não ter ensaiado com o coro aqui em Lisboa, defendeu-se dizendo que houve má vontade do coro em relação a ele, porque ganhou mais – estava a tentar mandar a culpa para cima de mim, que tinha organizado o evento. As pessoas alteram-se quando existe dinheiro à mistura, porque será? E este Ícaro foi teimoso até dizer chega. Levou dois textos dele para eu ler - devia ter em mente converter-me, um dos textos era sobre o filho pródigo. Fez também um comentário estranho sobre um casal homossexual presente no casamento, eu perguntei-lhe logo se havia algum problema com isso. Ai estes católicos, ele não fez comentários prejurativos mas deixou-me desconfiada de que... e disfarçou dizendo que a noiva era jeitosa. Também isso é lá com ele, chicoteie-se à vontade. Eu feita parva ainda me armei em boa samaritana, emprestei-lhe A Palavra do Carl Dreyer, visto que ele não conhecia o filme.
Só voltei a ver este Ícaro no Outono, combinou entregar-me o filme e vinha tão agitado que se esqueceu dele em casa. Conversámos mais uma vez sobre deus e outros afins e ele insistia na importância da audição da palavra, eu respondi-lhe que não lhe chamo deus, não tenho imagem para isso, mas tenho os meus contactos com o transcendente, que recebo sinais, tal como ele, só não uso o mesmo vocabulário. Respondi-lhe que o filme não queria vir ter comigo, porque queria falar com ele, por isso tinha ficado em casa e ele estava ali de mãos a abanar. O ditado bem o diz: deus escreve por linhas tortas. Depois marcou comigo num domingo, dia do senhor, no intervalo entre duas missas onde ia tocar órgão, dar-me A Palavra, finalmente. Foi então que o anjo ou Ícaro se evaporou de vez. Despedi-me dele e acho que só o volto a encontrar se o destino quiser, ou deus como ele lhe chama.
Maria João