Cartoons não matam pessoas # 3
João Miguel Tavares, cronista do Diário de Notícias, ocupa a maior parte da sua crónica desta semana a tentar convencer-nos de que «a civilização ocidental é superior à civilização islâmica». Algumas das questões por responder nesta intolerável querela são, desde logo, como podemos definir uma civilização e, mais difícil ainda, que coisa é essa da civilização ocidental. Como não pretendo, para já e, desconfio, para depois, abordar o tema, limitar-me-ei a pensar alguns dos argumentos, quanto a mim demasiado frágeis para serem levados a sério, de João Miguel Tavares. Tal como ao cronista, o relativismo cultural também me provoca urticária. Mas aqui não se trata disso. Trata-se antes de usarmos alguma ponderação, coisa cara aos gregos antigos, um dos pilares da putativa civilização ocidental, hoje uma das partes menos apreciadas do grandioso Ocidente. Acha João Miguel Tavares que o que separa hoje Portugal do Irão não é apenas do domínio da subjectividade. Certamente não será, sobretudo se for apenas. Como nunca visitei o Irão, como não conheço o Irão senão por aquilo que me fazem chegar os filtros da civilização ocidental, não comento. É claro que não gostaria de viver no Irão, assim como não gostaria de viver, sei lá, nos EUA ou, enfim, na Inglaterra, no Japão ou noutro país qualquer que tenha visitado (Espanha, França, Itália, Hungria, Egipto, Holanda, República Checa, Grécia...). Gosto de viver em Portugal porque nasci português, o que, diga-se em abono da verdade, não é estigma aconselhável a ninguém. A questão, julgo eu, deveria ser colocada de outra forma: gostariam os muçulmanos de viver no mundo ocidental? Quanto a isto, João Miguel Tavares diz o seguinte: «os muçulmanos emigram para os países ocidentais, e os ocidentais não emigram para os países muçulmanos». Não sendo rigorosamente verdade, seria, mais uma vez, interessante reparar nas hordas de ocidentais que emigram dentro do ocidente. Há para aí muita malta ocidental a saltar de país em país em busca, digamos assim, do tempo perdido. É gente esquecida, mas não é gente menos relevante. E, sobretudo, não é menos gente do ocidente. Somos mais desenvolvidos tecnologicamente, cientificamente, outros mentes? Que nos sirva então o termos podido tornarmo-nos no que somos à custa da exploração dos pretos que arrancámos às áfricas e fomos botar lá para as américas e cá para as europas superiormente ocidentais. É curioso como na sua crónica, João Miguel Tavares deixa para o fim esta pérola da superioridade ocidental (são quatro breves linhas): «A divulgação das imagens dos espancamentos britânicos no Iraque ou das novas fotografia de Abu Ghraib obedeceu a duvidosos critérios políticos? Com certeza. Mas isso de nada importa face ao essencial. E o essencial é que nenhum exército civilizado pode permitir que sejam cometidas semelhantes barbaridades. Ponto final.» Eis que a superioridade do Ocidente se faz notar na civilidade dos seus exércitos. O Padre António Vieira, se bem me lembro, escreveu qualquer coisa sobre isto. Já lá vão uns anitos, é certo. Daí, talvez, o esquecimento. Se há coisa que me parece não ser superior no Ocidente é a memória. O Ocidente parece padecer de uma espécie rara de amnésia que lhe permite apenas recordar o que mais lhe convém, montando assim as peças do mundo à sua maneira. Não sei. Tenho-me lembrado apenas de alguns filmes didácticos que seria interessante rever. Por exemplo, O Menino Selvagem, de François Truffaut, sobre a história verídica de uma criança que, depois de ter sido arrancada à floresta onde havia crescido em completa solidão civilizacional, fugiu de regresso ao mundo onde não queriam que ela vivesse. Já não me lembro como acabou… Mas lembro-me do sentimental Amistad, interessante para percebermos como se tornou o Ocidente no paradigma da defesa dos Direitos Humanos. Tenho-me lembrado igualmente d’ O Homem Elefante, de David Lynch, sobre o anormal John Merrick, cuja desfiguração motivava a estupefacção sensacionalista do público numa feira de aberrações. E por falar em feira de aberrações, lembro-me agora do (tendencioso?) Bowling For Columbine, do polémico Michael Moore, onde o realizador americano se interroga sobre o por quê de tantos dos seus conterrâneos se matarem uns aos outros. Vejam bem, isso passa-se no pilar actual da nossa civilização! As respostas, como sabemos, são várias mas resumem-se a isto: más influências – da pobreza, dos media, dos governos, dos etc. E por falar em más influências, talvez não fosse má ideia rever também o «magnífico», «arrebatador», «tremendamente poderoso» América Proibida, de Tony Kaye, onde um jovem skinhead americano dá a volta às suas atitudes depois de uma má (ou boa, dependendo da perspectiva) experiência na prisão. É um filme de esperança que nos leva a acreditar estar sempre um homem a tempo de mudar. Aliás, não é nisso que assenta a mentalidade superior do Ocidente? Na fé absoluta e inabalável na pessoa humana, viva ela a ocidente ou a oriente?
6 Comments:
Estou com um imenso problema, curiosamente. Decidi passar algumas partes do filme América Proibida a uma turma de 12º ano, mas saí de lá a perguntar-me se teriam apanhado o que eu queria... É curioso.
E o que queria que eles apanhassem?
Porque a leccionar conteúdos que relacionam atitudes, estereótipos e preconceitos, queria que percebessem o quão perigosas as categorizações podem ser.
E acima de tudo, que problematizassem toda esta questão da (in)tolerância, da suposta supremacia (moral de uns, religiosa de outros). Bom, de qualquer modo achei curioso que, num dia em que regressei a casa com mais dúvidas que o habitual, achei curioso ler um texto que fazia referência ao filme que acabava de me suscitar tantas incertezas.
Ok. "Então é assim": eu também costumo visionar o mesmo filme com os meus formandos. O contexto é semelhante, a problemática do "ser pessoa". Normalmente sugiro aos alunos que me escolham uma cena para ilustrar o que eles entendem sobre os seguintes conceitos: ser-se autónomo, singular, espiritual, inacabado... Eles escolhem as cenas, discutimos as mesmas e, no final, cada um sintetiza as suas ideias com textos pessoais sobre o assunto. Nas aulas seguintes, confrontamos os textos de cada um com outros, escolhidos por mim, que abordam os mesmos assuntos.
Infelizmente, não disponho de muito tempo, já que estou espartilhada por um exame final que me compele freneticamente a pulular entre os conteúdos o mais sinteticamente possível. De qualquer modo, pretendo roubar a próxima aula exactamente para a discussão de algumas cenas.
Obrigada pela atenção dispensada.
Woman, obrigada nada. Eu é que agradeço as visitas e os comentários. As merdas dos exames é que tramam tudo, eu sei. Também tenho uma turma de 12.º, de Psicologia. É sempre a andar... Uma desgraça.
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