21.2.06

Fragmento #30 – Pinhais

Olho a página em branco da folha e penso: és apenas papel, eu sou tempo e ânimo, as minhas mãos vão moldar-te e tu serás uma página na minha vida. Entro na página de papel, mas ela movimenta-se como o sol de um novo dia, impenetrável, como a própria vida; esta página de papel pertence a um livro que contém fragmentos da minha existência e leva-me a outras páginas em movimento, onde o sol nasceu e se apagou todos os dias. Sinto o cheiro destas páginas, o cheiro dos pinhais, não sei se são os pinhais na estrada de Setúbal, se são na região de Leiria, mas reconheço este cheiro a liberdade, que me alivia os pulmões e me leva ao desconhecido, a uma nova página adiante. O cheiro dos pinheiros é no entanto longínquo, acompanha esquecimento, é como um pedaço de cortiça num vinho de reserva, que surge num aroma intenso no interior da boca, arranhando a língua quando menos se está à espera; este pedaço de cortiça remete-me para o estado da rolha quando se abriu a garrafa de vinho antigo, com o sabor do tempo no seu corpo. Entro nas páginas de um livro onde escrevi sobre os pinhais nas estradas onde viajei, mas os seus aromas fundem-se no movimento da estrada, as texturas do papel contêm mistérios temporais, não foram apenas as minhas mãos a modelarem estas páginas, elas também me modelaram a mim, com o seu tempo e ânimo. Percorro as páginas de livros que me contam vidas inteiras onde o sol nasceu e se apagou todos os dias, as páginas fundem-se com as da minha própria vida, com o meu esquecimento; estas páginas por vezes voltam a estar presentes através de um aroma que reconheço, não sei bem de onde, ou uma palavra que cai das minhas mãos, ou cai da boca de alguém como um beijo, mas é muito raro acontecer; porque falar nunca é como beijar, mas escrever deveria ser como beijar de forma que a língua se possa fundir com o papel, no seu aroma a pinhais, transformando a matéria em tempo e ânimo, como uma brisa ou um sopro penetrando a própria vida.

Maria João