19.2.06

Cartoons não matam pessoas # 4

A primeira questão começou por ser: deverá um jornal, num país democrático, ter o direito de publicar cartoons xenófobos e racistas? Do meu ponto de vista sim, como forma de garantir a mais básica liberdade de expressão. No entanto, é bom ter em conta que um cartoon não é uma notícia, é a expressão artística de uma perspectiva acerca da actualidade. A segunda questão foi: justificam-se as reacções, de parte do mundo islâmico, aos cartoons? É claro que não. Como disse anteriormente, cartoons não matam pessoas, cartoons não destroem embaixadas, não queimam bandeiras, não ameaçam de morte, são expressões inofensivas do pensamento humano. Terceira questão: como entender então a desproporção entre a causa e o efeito? Jaime Nogueira Pinto afirma algumas coisas interessantes sobre o assunto: «Os crentes no Deus do Livro – cristãos, muçulmanos, judeus – têm um sentido do sagrado que é, coerentemente, o seu primeiro valor. Respeitam e amam Deus sobre todas as coisas e os valores – políticos, de família, de amizade, de solidariedade - são para eles um reflexo e uma continuação dessa ligação ao divino. Por isso, uma ofensa à religião como representar Deus, Cristo ou Maomé grotescamente, é uma ofensa pessoal ao que têm de mais querido.» (Expresso, 18 de Fevereiro) Isto justifica a resposta de parte do mundo islâmico? É claro que não, mas ajuda a compreendê-la. No entanto, o mesmo Jaime Nogueira Pinto parece não estar crente das motivações religiosas por detrás da resposta muçulmana. Ele fala, a terminar o seu artigo, numa putativa «guerra «religiosa», provocada e chefiada por ateus!» Isto parece-me ridículo, pois podemos admitir a existência de bons (moderados) e maus (fanáticos) crentes sem negarmos aos maus a existência de uma fé. O autor do artigo parece querer dizer que por detrás das reacções muçulmanas estão ateus fanáticos, manipuladores e interesseiros. A história da religião também é feita disto: gente de fé fanática, manipuladora e interesseira. Dizer que esta gente de fé não tem uma fé verdadeira - é inútil e ridículo. É como dizer que, no fundo, Estaline e Mao nunca foram comunistas, que eles eram uns malvados fascistas disfarçados de comunas! Haja tento no disparate. A crónica mais interessante (infelizmente não a mais relevante) sobre o assunto é, quanto a mim, a de Faíza Hayat na XIS (Público de 18 de Fevereiro). Para a entendermos correctamente, importa lembrarmos a quarta questão: é a civilização islâmica inferior à nossa? A pergunta causa arrepios, eu sei. Foi, porém, colocada não no sentido de legítima interrogação mas como asserção indiscutível por muito boa gente. Quanto a isto, atentemo-nos a este parágrafo da cronista da XIS: «Há muitas interpretações do Islão, da mesma forma que existem muitas versões da doutrina de Cristo, desde as pacifistas radicais às mais violentas e belicistas. O exemplo de Jesus Cristo inspirou Ghandi, que nem sequer era cristão, mas o seu nome também foi utilizado para justificar os crimes da Inquisição, das Cruzadas ou, mais recentemente, do colonialismo português. Os meus amigos muçulmanos ficaram tão chocados com as caricaturas dinamarquesas como com a reacção das multidões em alguns países nos quais o Islão é a religião maioritária». Por que terão, então, sucedido essas reacções? Podemos pensar em duas coisas: manipulação das massas e, a razão que acho mais viável, naquilo a que chamarei o efeito panela de pressão. O que me parece é que estamos a lidar com todo um povo que ainda não consegue ser tão indiferente quanto nós a uma série de valores. Repare-se como nós já não nos chocamos com as imagens cada vez mais terríveis que nos chegam, por exemplo, de Abu Ghraib. Repare-se como não há abaixo-assinados nem manifestações junto às embaixada dos EUA e da Inglaterra a exigirem o fim dessas práticas inaceitáveis de tortura. São imagens que passaram a fazer parte do nosso quotidiano, almoçamos, jantamos, brincamos com os nossos filhos enquanto elas passam na televisão. São-nos indiferentes. A nossa indiferença à morte, à tortura, à opressão, às inevitáveis dores da guerra torna, convenhamos, bem difícil de entender o que será o ódio nos corações de um povo que se vê assim humilhado. Os cartoons só fizeram saltar a tampa, foram o pretexto para uma leve explosão na panela de pressão em que o mundo se tornou após a invasão errática do Iraque. Haverá remédio para isto? Talvez sim, mas o caminho não é o da quinta questão: onde tem andado o bom Islão, que não se vê? A pergunta, lamento, não pode ser esta. A pergunta tem de ser, antes de mais, onde tem andado o bom Ocidente? Inês Pedrosa, em crónica infeliz, indigna-se contra a bipolarização para também ela ser bipolar: «há sempre gente pronta a aplaudir os que fritam os outros, para não se queimar» - como se aqueles que recusam manifestar-se ao lado de gente xenófoba e racista (repare-se no comportamento do ignóbil ministro das Reformas italiano, Roberto Calderoni, ao “ao anunciar que mandou fazer ‘t-shirts’ com as caricaturas de Maomé para vestir e oferecer a quem quiser”) aplaudissem o comportamento dos fanáticos de Maomé. A Inês Pedrosa que vá manifestar-se com as t-shirts do Calderoni, só lhe ficará bem. Eu recuso-me a ir. Urge retirar disto tudo algumas conclusões. Se os chamados moderados do Islão não se ouvem é porque em regimes que não são democráticos será muito difícil fazerem-se ouvir, isto se não formos nós, que podemos exercer a nossa liberdade sem estarmos sujeitos a represálias, a dar-lhes a voz que não podem ter. Queremos que a democracia chegue a esses países? Comecemos por dar o exemplo do que é uma boa democracia, uma democracia que não se impõe tanto pela força das armas e da tortura como deverá impor-se pela força da razão. E a razão, a meu ver, é o que mais nos tem faltado nos últimos tempos. Alguém ainda se lembra?