GASTAR PALAVRAS
Kieran Hebden, guitarrista dos Fridge, banda britânica de post-rock, é o nome por trás dos Four Tet. Neste projecto Hebden aplica-se na manipulação electrónica, que é como quem diz: pega num computador e faz música. A música electrónica deve estar para a Música como os weblogs estão para a Literatura. Ou talvez não. O que me agrada nas novas tecnologias é o seu potencial criativo, o poderem estar ao serviço do espírito «do it yourself». Estive ontem na Feira do Livro de Lisboa a dizer umas coisas sobre o livro de um amigo que, de certa maneira, podem relacionar-se com isto. Esse meu amigo começou por publicar pequenas histórias em edição de autor. Além de imaginar as histórias, além de as escrever, ele paginava os textos, colava as páginas, dobrava as cartolinas, fazia as encadernações. Havia um valor adicional nessas edições, o valor de alguém que se entrega à palavra "de alma e corpo". Livro sério é aquele que é feito com seriedade, disse. Ponto final. Acontece que esse meu amigo, depois de tentar a sua sorte de várias maneiras, conseguiu finalmente ver algumas das suas histórias editadas em livro com o carimbo de uma editora. Trata-se de uma editora recente, pequenina, mas, segundo me apercebo, com muita vontade de fazer coisas boas. O livro chama-se Gastar Palavras. Reúne contos anteriormente publicados em fascículos, folhas dobradas e agrafadas que andaram de mão em mão num extraordinário bar de Leiria que dá pelo nome de Alinhavar. Passem por lá e comprovem. O Paulo teve a simpatia de me dedicar o livro. Eu tive a simpatia de o referir por aqui. Mas o livro, que venceu este ano o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2005, um galardão instituído pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão e pela Associação Portuguesa de Escritores (APE), não tem aparecido onde mais devia aparecer. A imprensa especializada teima em ignorá-lo. Os críticos literários deste país teimam em ignorá-lo. Gostava que os bloguistas que escrevem crítica literária nos suplementos literários, ou de alguma forma estão ligados à divulgação e promoção do livro, passassem os olhos pelo weblog do meu amigo. Podem encontrar lá alguns contos. Não encontrarão o livro. Presumo que o livro tenha sido enviado para as redacções. Mas as redacções preferem perder tempo e espaço com algumas inanidades, promovendo assim alguma da porcaria que se vai impingindo à sombra das coisas boas, exibindo mesmo, por vezes, o rosto dos autores desses objectos inclassificáveis. Outros autores ganharam o mesmo prémio que o meu amigo ganhou, todos eles merecendo atenção diferente: Mário de Carvalho, Maria Velho da Costa, Luísa Costa Gomes, José Eduardo Agualusa, António Mega Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues e Manuel Jorge Marmelo, entre outros. Desta feita, houve igualmente autores que perderam, para o livro do meu amigo, este mesmo prémio: Manuel Alegre, Frederico Lourenço, Gonçalo M. Tavares, etc… Questiono-me se a atenção seria a mesma se tivesse sido um desses autores a ganhar o prémio. O Paulo Kellerman, o meu amigo, é de Leiria. Não tem amigos influentes em Lisboa. Não tem amigos influentes nas redacções. Não tem amigos influentes nas editoras. Não tem amigos influentes. Nem faz parte de minorias protegidas. É uma pessoa... quase normal. Tem-me a mim, o pobre coitado, que o mais que posso fazer é dedicar-lhe este post fraterno e uma canção dos Four Tet.
8 Comments:
apoiado!
quando ouvi os nomes de alguns dos "derrotados" ainda fiquei com uma maior sensação de injustiça em relação ao Paulo e ao seu livro.
vou fazer isto rodar, pelo menos vou fazer os possíveis. orgulho-me de também não fazer parte de nenhuma minoria protegida, de ter amigos verdadeiros a quem não lambo as botas e de protestar contra as injustiças, mas devo dizer que também eu sofro na pele, tal como vejo outros sofrerem, pelo pecado de ser simplesmente honesta e de querer trabalhar, trabalhar, trabalhar em paz e sossego. devo dizer que trabalhlo é coisa que me falta muitas vezes, porque o Teatro, tal como a Loiteratura, também tem o seu mainstream
Por isso é que o Alinhavar na sexta-feira estava fechado... Não gosto e bater com o nariz em nenhuma porta, principlamente em portas como as do Alinhavar! Mas lá estava a explicação estampada em poster, a entrega do prémio a Paulo Kellerman, de quem o dono é amigo e por isso foi para uma comemoração que não recordo exactamente qual...
O Alinhavar é de facto um bar extraordinário: bom ambiente, boa música, jornais e revistas, tabuleiros de xadrez e esses papelinhos pejados de versos e sentenças expeditas que circulam pelas mesas em copos de vidro.
Quase sempre que lá vou há uma surpresa guardada para mim! São os papelinhos que desenrolo; foi a lareira no Inverno, enorme, daquelas antigas e onde nunca pensei que ainda botassem lume; foi, da última vez, um livro de Paulo Kellerman que trouxe para casa, oferecido pelo dono do Alinhavar. Aliás, muito simpaticamente ofereceu-nos vários. Um casal de amigos teve mais sorte que eu e levou-os quase todos, tinham chegado primeiro! Ninguém conhecia Paulo Kellerman ou sequer tinha ouvido falar a não ser ao dono do bar. Conhecemos ali, naquele momento, livros a passar de mão em mão, líamos sobretudo pequenos textos que às vezes dizíamos aos outros para lerem também. Só mais um, pensava eu, e suspeito que todos eram silenciosamente cúmplices, porque assim fomos permanencendo durante um bom bocado...
Eu já falei muito nos últimos tempos... Vou apenas em silêncio ouvir a música... Foi por causa de música que tudo começou...
Agradeço a todos a afectuosa cumplicidade.
Fui lá ao weblog do Kellermann e gostei. Prémio bem dado. Ele que que se engate com a Merche Romero a ver se não tem saída!
Penso que há muitos Kellermann!
Este até teve sorte ou fê-la acontecer.
E tem amigos! E há lá coisa melhor que isso?
Grande post!
muito obrigado a todos
pelos comentários
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