O que entusa e dá asma ou, muito simplesmente, acerca do entusiasmo
Abstendo-me de opinar sobre questões que extravasam, pela complexidade, a penúria da minha sapiência, não posso deixar de sugerir a leitura de alguns posts sobre o tema político mais entusiástico do momento. Entusiástico é apenas um modo de dizer, já que a mim nada disto entusiasma por aí além. Sérgio Lavos discorre, com arrevesada ironia, sobre o tratamento que o jornal Público tem vindo a fazer do conflito no Médio Oriente. Diz: «Agora que finalmente já mandámos às malvas toda a decência e qualidades da democracia - que inclui, imagine-se, um jornalismo essencialmente neutro e objectivo, sem tomar partido, na prática um jornalismo que não seja propaganda pura - podemos finalmente dizer que já possuímos as mesmas armas que os fundamentalistas e terroristas há muito manejam (e deixem-me ser catastrófico e exagerado): a manipulação dos factos, a recusa da moderação, um belicismo feroz e agressor contra quem está do outro lado barricada.» A ideia de que o jornalismo pode ser neutro e objectivo sempre me causou alguma impressão, tal como a de que essa suposta neutralidade alicerça a democracia. Há alguma ingenuidade, creio, neste ponto de vista. O jornalismo, feito por jornalistas, é tanto mais democrático quanto mais declaradamente partidário for. A democracia - esse conluio de exíguas maiorias - só será verdadeiramente democrática - deixando assim de ser aquilo que verdadeiramente é, ou seja, o repasto da carneirada - quando a cada um for concedido o direito de ser parcial, de se estar nas tintas para isso a que chamam objectividade. Daí que um Avante seja sempre preferível a um Público, pois relativamente ao Avante o consumidor da notícia saberá sempre com a porcaria que pode contar. Alguém pode acreditar na objectividade do tratamento dado às imagens que os telejornais nos servem à hora da paparoca? Nem os directos já são objectivos, na medida em que encenam a realidade (manipulação dos factos) a partir das perspectivas disponibilizadas no arbítrio de uma cabine de realização. Outro texto muito interessante, sobre o mesmo assunto, é o de Bruno Santos no weblog Baixa Autoridade. Neste caso o alvo de crítica é uma notícia da Lusa. Fala de «uma sofisticada tecnologia de contaminação da chamada “opinião pública”». A opinião pública é, por definição, um artefacto infectado pela informação de massa. Daí que seja contraproducente - até elogioso - acusar numa notícia da Lusa o sinal de uma «sofisticada tecnologia de contaminação», pois essa notícia não é senão efeito das máquinas produtoras de virtualidade que dão forma ao mundo da informação comunicável (outra há, fechada a sete chaves, que será sempre top secret). Recordo Karl Jaspers: «Público são todos os anónimos outros, a multidão sem inter-relação orgânica, cuja opinião assume força decisiva. A isto se chamou opinião pública. Ela tornou-se, num plano ficcionista, a opinião tida como a de todos, evocada e formulada como sendo a de indivíduos e grupos. No fundo, porém, constitui uma realidade imponderável e, por esse motivo, sempre ilusória, momentânea e evanescente, um nada que, sendo o de um grande número de indivíduos, vem a tornar-se um poder do instante que passa, destrutivo e fanatizante.» O Bruno diz-se repugnado até à náusea. Como eu o compreendo! E admiro até a boa vontade na denúncia destes casos. No entanto, mais que denunciar estes casos eu prefiro sempre lembrar-me de quão fantasmagórica é «a realidade» que nos chega através dos meios de comunicação de massa. Na base deste princípio, o que me custa realmente aceitar é a facilidade com que no conforto das salas de estar qualquer um de nós ousa dizer-se deste ou daquele lado da barricada. É que, no fundo, "nós" não sabemos de que estamos a falar. Ou melhor: sejamos “amigos de Israel” ou “amigos da Palestina” - estas especificações valem sempre mais pelo que excluem do que pelo que incluem - sabemos apenas que estamos a falar daquilo que é suposto a massa falar.
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