18 de janeiro
Fernando Dinis – Voz e Piano
«cogito em coisas que me recordam conversas distantes com amigos. não sei bem o quê, chegam à memória rostos e sons. vozes. não compreendo o que dizem, estou cansado. é-me difícil saber se sou eu ou o meu corpo que está cansado. talvez estejamos os dois, raramente nos separamos. aturamo-nos os maus humores e os momentos de insuspeita felicidade. dormimos e amamos juntos.
por vezes apetece-me deixá-lo, voar e estender-me por cima dele, esfregar-lhe o sexo na boca, nos cabelos, beijá-lo, fazer-lhe inesquecíveis cenas de ciúme, para depois ter o prazer da reconciliação comigo mesmo.
mas há momentos muito tristes, aqueles em que as plantas crescem subitamente para dentro da sombra, e tu não estás aqui. é obsessão minha amar quem passa. se abrisse os lhos ter-te-ia, só para mim. até à linha inexistente do horizonte do mar.
anoitece devagar. anoitece sobre os ombros. anoitece onde não estou e em redor do meu corpo, anoitece por dentro dos objectos que evocam a tua presença. a penumbra invade a casa, corrói tudo o que é sólido.
dantes, a solidão vergava-me, mas com o passar dos anos povoei-a com sorrisos, corpos, pequenos gestos que aderem à memória e me dizem que existo, que continuo vivo onde pressinto o coração a arder. é o ouro que se ganha quando se aprendeu a estar sozinho, tem-se tudo e não se possui nada. o que restava da memória foi partilhado ou foi abandonado para sempre. tudo está constantemente presente e vibra sob a luminosidade imperceptível de ser eterno na fracção de segundo.
se morresse agora mesmo não deixava nada, porque bebi toda a minha sede, esvaziei-me, devorei noites a fio esse amargo que têm as coisas antes de nos pertencerem. teu corpo, por exemplo, custou-me tanto inventar-lhe formas consistentes, um reflexo, uma sombra que se lhe adaptasse e o acompanhasse. teu corpo vive hoje dentro do espelho onde se perdeu o meu.
não escrever, não falar, não gesticular. imobilizar-me como a pedra que freme à passagem do vento. uma lágrima irrigará o cristal, um veio de água sobre as pálpebras, sobre os lábios que adivinham a transumância das constelações. a respiração rouca da árvore sob o peso da geada. a flor que sinaliza o caminho dos insectos. a terra, a pouco e pouco, perceptível ao tacto. grito, finjo que grito.
sentado à varanda do mundo morro como todas as coisas que morrem, sobrevivo com todas as coisas que vivem.
permaneço sentado, não faço absolutamente nada, nem mesmo pensar. descobri o lugar onde o corpo e a mente pernoitam fora do tempo.»
por vezes apetece-me deixá-lo, voar e estender-me por cima dele, esfregar-lhe o sexo na boca, nos cabelos, beijá-lo, fazer-lhe inesquecíveis cenas de ciúme, para depois ter o prazer da reconciliação comigo mesmo.
mas há momentos muito tristes, aqueles em que as plantas crescem subitamente para dentro da sombra, e tu não estás aqui. é obsessão minha amar quem passa. se abrisse os lhos ter-te-ia, só para mim. até à linha inexistente do horizonte do mar.
anoitece devagar. anoitece sobre os ombros. anoitece onde não estou e em redor do meu corpo, anoitece por dentro dos objectos que evocam a tua presença. a penumbra invade a casa, corrói tudo o que é sólido.
dantes, a solidão vergava-me, mas com o passar dos anos povoei-a com sorrisos, corpos, pequenos gestos que aderem à memória e me dizem que existo, que continuo vivo onde pressinto o coração a arder. é o ouro que se ganha quando se aprendeu a estar sozinho, tem-se tudo e não se possui nada. o que restava da memória foi partilhado ou foi abandonado para sempre. tudo está constantemente presente e vibra sob a luminosidade imperceptível de ser eterno na fracção de segundo.
se morresse agora mesmo não deixava nada, porque bebi toda a minha sede, esvaziei-me, devorei noites a fio esse amargo que têm as coisas antes de nos pertencerem. teu corpo, por exemplo, custou-me tanto inventar-lhe formas consistentes, um reflexo, uma sombra que se lhe adaptasse e o acompanhasse. teu corpo vive hoje dentro do espelho onde se perdeu o meu.
não escrever, não falar, não gesticular. imobilizar-me como a pedra que freme à passagem do vento. uma lágrima irrigará o cristal, um veio de água sobre as pálpebras, sobre os lábios que adivinham a transumância das constelações. a respiração rouca da árvore sob o peso da geada. a flor que sinaliza o caminho dos insectos. a terra, a pouco e pouco, perceptível ao tacto. grito, finjo que grito.
sentado à varanda do mundo morro como todas as coisas que morrem, sobrevivo com todas as coisas que vivem.
permaneço sentado, não faço absolutamente nada, nem mesmo pensar. descobri o lugar onde o corpo e a mente pernoitam fora do tempo.»
Al Berto, O Medo, Livro Décimo, 1985.
Fernando Dinis
2 Comments:
uma surpresa bastante agradável. vou ouvir outra vez.
um abraço
Luís
Gostei muito..."falou"muito bem.
um abraço
j.Rocha
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