23.10.06

XUTOS

Xutos
O primeiro álbum dos Xutos & Pontapés, 78-82, data de 1982, tinha eu 8 anos. À época estava mais interessado em fazer explodir sapos com bombinhas caseiras, caçar passarinhos com uma fisga artesanal, matar cobras à pedrada num dos açudes do Rio Maior. Não foram precisos muitos anos para que os Xutos & Pontapés se tornassem numa das bandas mais ouvidas na Rua das Flores. Canções como Sémen, Mãe, Quando eu Morrer, entre outras, foram uma tremenda dor de cabeça para as pacatas famílias da cidade que um dia viu rugir o fantasma de um leão. As actividades recreativas foram sendo substituídas, as preocupações ecológicas consolidaram-se num sentimento de profunda admiração por tudo o que provinha da natureza, a vontade de fazer coisas consideradas pela maioria uma absoluta nulidade foi mais forte que os grilhões dessa vida social que qualquer adolescente saudável considera inútil. Em suma, cá estamos – mais agrilhoados que Prometeu, mas estamos. Toca & Foge é uma das minhas canções preferidas, desde logo porque termina com os três versos mais substanciais alguma vez escritos por uma banda de inspiração punk: «Puta de vida / Tu és um / toca e foge». É preciso dizer mais? É. Talvez o que é dito noutra das canções de 78-82, Falhas: «Não te deixes cair em tentações / melancólicas / Porque rebolar no lodo só serve / para te sujares». E depois disto, o que fica? Os Xutos aburguesaram-se. Ninguém lhes retira, porém, o mérito de terem contribuído para a formação mental de milhares de adolescentes entretanto, como eles, também aburguesados. À excepção de um ou outro, quase sempre previamente desaparecidos – ou do mapa ou da vida -, cá vamos indo atrás do balcão, multinacionalizados, em miseráveis palanques onde procuramos meter nos bolsos, ao fim do mês, o que nos garanta água, gás, electricidade e mais uma trindade de pequenos luxos que nos desenganem o por demais evidente: «Puta de vida / Tu és um / toca e foge». Sejamos sinceros: dormir-trabalho-casa não é mecanismo lá muito entusiasmante. Talvez se pudéssemos sair daqui para fora, talvez se pudéssemos aquietar a inquietação, talvez se pudéssemos sossegar o desassossego, talvez se pudéssemos reaprender o ofício de viver sem o ónus deste tédio gelado, tão gelado que nos congela as mãos, que nos senta a um canto, a olhar para o tecto, a contar mosquitos. O que nos resta? Olhem, lembrei-me agora, assim de súbito, de um poema do José Miguel Silva. É o décimo quinto de Vista Para um Pátio (Relógio D’ Água, 2003). O que nos resta?! Resta-nos, pelo menos, isto:

QUINZE

Nos campos de futebol da infância
não há jogadas estudadas.
Cada um garante aquilo que vai ser.

O Fisga jogava ao ataque, entrava
a matar, fuzilava o guarda-redes
sem má consciência, e depois festejava
sozinho. Tornou-se empresário de
import-export
com tráficos de fundo social europeu.

O Tino perdia-se em fintas
de belo efeito e nenhum seguimento.
Muitas vezes o erguemos do chão.
Dedica-se às artes ornamentais.
Três exposições só no ano passado.

A falta de jeito do Trocas
fazia-nos rir. Estava sempre a perder
a bola, conseguia acertar
nas janelas mais altas.
Meteu-se nas drogas, morreu afogado
num dia de Junho.

Já o Lipe, o solerte Lipe, ninguém tinha tanto
futuro: hábil em todos os campos, lia o jogo
como um general, conduzia a bola
como quem sabe para onde vai. Hoje em dia,
gestor de futuros na Bolsa de Londres.

O Croas era o mais instável.
Teve dias de ser levado em ombros
contra dias de morrer sozinho.
Uma só coisa nele era constante,
a incapacidade de fazer batota,
de simular a falta, de discutir a clareza
de uma derrota. Acidente de trabalho,
vive, ao que dizem, de meia pensão.

E havia o Tono Bom, que gostava
de bater. Corria atrás de nós
e sabia magoar. Recusava o arbítrio
dos regulamentos. Destinado a ficar
na bancada da vida, quem sabe onde pára.

Cá atrás, entre duas pedras,
a marcar os postes, eu fazia o possível
por suster a vaga, por manter inviolada
a confiança no sentido do jogo.
E agora, invento memórias, relato desaires.

6 Comments:

At 12:03 da tarde, Blogger manuel a. domingos said...

os xutos nunca foram uma referência para mim, nem mesmo agora que também, e de certa maneira, me aburguesei.

quanto ao poema do josé miguel silva é, sem dúvida uma referência, este e todos os outros que compõem o Vista para um pátio, um dos grandes livros que li em 2003.

 
At 7:03 da tarde, Anonymous Anónimo said...

bela prosa.belo poema.
conheço bem o trocas o croas e o tono bom ;)

 
At 9:46 da manhã, Anonymous Anónimo said...

manuel: os xutos têm três álbuns muito bons. o resto é quase tudo para esquecer.

coisinho: eu também. e conheci mesmo um croas.

 
At 1:04 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Vi os xutos pela primeira vez na Incrível Almadenses, faziam a primeira parte aos UHF, tinha 12 anos e ainda não tinha saido o primeiro disco, ainda os vejo de vez em quanto por aqui (ensaiam junto aos bombeiros de almada), mais aburguesados ou menos, nestes anos, nunca um concerto deles me deixou indiferente.
Também joguei com muitos trocas e parecidos, inclusivé com um puto que, apesar de pequenote (era mais novo 2 anos), tinha muito jeito e fintava-me de todas as maneiras e feitios no pátio dos Jeovás, onde era uma alegria quando não partiamos um vidro, era o Figo e parece que fez mesmo aquilo que queria e gostava.
Que bom para ele.
nelson

 
At 11:22 da tarde, Blogger ruialme said...

Henrique,
pormenor picuinhas: "Sémen" e "Toca & foge" não fazem parte do alinhamento original de "78-82". Eram as canções de um single anterior ao primeiro álbum dos Xutos. Creio q numa edição mais recente em cd aparecem incluídos sob o mesmo título.
De resto... sintonizado com o q escreves.

 
At 10:19 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Rui, obrigado pelo comentário. Sei disso. Se no post tal fica subentendido peço desculpa. Não era essa a intenção. Tenho o «78-82» em vinil e em CD, assim como o «Cerco» e «Circo de Feras». O resto não me interessa muito, embora ainda tenha por cá, em vinil, mais uns tantos: o «88», o ao vivo, o «Gritos Mudos» e o «Dizer Não de Vez».

 

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