20.6.07

EUTANÁSIA

A notícia está no DN Online: «39% dos médicos oncologistas portugueses defendem a legalização da eutanásia, mas apenas 24% dizem que, se esta fosse uma prática legal, estariam dispostos a fazê-la». Este desfasamento entre a defesa da eutanásia e a prática da mesma é compreensível, embora me custe aceitar que um médico que se manifesta a favor da legalização da eutanásia possa, posteriormente, recusar aplicá-la. Por que razão o fará? Por razões éticas e morais? Por razões deontológicas? Ao defender-se a legalização de algo não se está a defender a sua moralidade? Não tenho resposta para tais questões, que não pretendo aprofundar, nem sequer posso afirmar que tenha pensado muito sobre o tema. O que sempre me incomodou foi a imposição da vida a alguém que “apenas” deseja morrer. Um homem não pode ser impedido de se matar, mesmo quando para o fazer necessite da ajuda de alguém. Esse impedimento, mais que outro qualquer, é que me parece imoral. Duvido que haja algo mais imoral do que não ajudar a entrar na morte alguém que precise dessa ajuda, o que, bem vistas as coisas, é muito parecido com não ajudar alguém a entrar na vida. Imaginem uma mulher nas aflições de um parto e uma parteira, a seu lado, por um qualquer motivo de "ética privada", recusar auxiliá-la. Conseguem imaginar gesto mais egoísta? Eu não. Temo que a susceptibilidade da questão esteja mais relacionada com o modo como encaramos a perda de alguém do que com o valor da vida ela mesma, um valor sempre subjectivo e relativizável. É certo que o sentimento de perda é indissociável do valor que tem para nós a vida que se perdeu, por isso mesmo Deus aparece aos homens nesse momento limite de confrontação com a efemeridade da vida e a necessidade da mesma. Ou, melhor dizendo, criam uma certa dificuldade aos que buscam antecipadamente a concretização desse desejo. Por isso vituperam o suicídio e a morte assistida, a eutanásia. De um certo ponto de vista, essa censura também denota algum egoísmo, para não dizer uma certa inveja. Impedir alguém de aceder ao que eu mais ambiciono, neste caso a vida eterna, não pode denotar outra coisa. Talvez isso se explique pela fé no milagre, uma esperança cega no improvável. Obrigar alguém a viver pode ter a sua fundamentação nessa fé. A esperança numa vida depois da morte, esperança que não nutro, é não apenas a esperança numa vida paradisíaca, mas sobretudo a esperança numa vida que não seja efémera, isto é, numa vida eterna. Curiosamente, os que possuem essa esperança parecem conviver pior com o sentimento de perda do que os outros. Quando penso nestas coisas, lembro-me sempre de uma passagem de um dos livros da minha vida. Nas Confissões, Santo Agostinho relata, ao Livro Quarto, a perda dum amigo. Há quem interprete a passagem como uma confissão da homossexualidade do santo, assunto pelo qual não entrarei. A mim interessa-me mais esse momento como um momento de revelação. Perante a dor da perda, que levava Agostinho a ver morte em tudo, Deus apareceu como uma verdade reconfortante: «Feliz o que Vos ama, feliz o que ama o amigo em Vós, e o inimigo por amor de Vós». Ora, para quem não pode amar à luz do Senhor um amigo que se perdeu, a dor será outra. Não menor nem maior, mas de outro tipo. É fácil compreender isto se aceitarmos que a dor da perda não é sempre igual, ela difere consoante o motivo da perda. Perder um pai por causa de um cancro não é o mesmo que perder um pai que se suicidou, assim como perder um filho num assalto à mão armada não há-de ser o mesmo que perder um filho num acidente de viação. Os sentimentos que se misturam com o sentimento de perda tornam a forma como encaramos a perda diferente de caso para caso. Penso nos pais a quem raptam um filho. Para todos os efeitos, perderam(-se) (d)o filho, mas com essa perda mistura-se a esperança de voltarem a encontrá-lo. Uma esperança que pode revelar-se terrível. Vou dizer algo que pode parecer cruel, mas que reflecte bem o que penso sobre este assunto. Se alguém que eu amo tiver que morrer antes do suposto, não quero pensar que irei encontrá-lo numa outra vida. Quero apenas pensar que morreu, que tudo acabou. Mas prefiro, em todo o caso, que acabe bem, que essa pessoa acabe de bem comigo. Mesmo que isso implique pôr um termo ao seu sofrimento. No meu caso, é essa a luz que me guia. É esta a luz que me apazigua a dor da perda: saber que os que partem, partem de bem comigo.

9 Comments:

At 8:07 da tarde, Blogger MJLF said...

Não sei se todos os que acreditam na vida após a morte convivem assim tão mal com o sentimento de perda do outro, mas na cultura judaico-cristã existe o factor da culpa que é determinante. Ao egoismo e inveja que aqui falas, relativamente a não ajudar a morrer alguém que está em agonia, eu acrescento o sadismo imoral perante o sofrimento, alguém que assiste de braços cruzados só pode ter prazer no sofrimento do outro (mesmo inconscientemente). E não ajuda porque não quer ser um "assassino", porque não quer ter responsabilidades na morte do outro ou sentir-se culpado da sua morte, descarta-se assim de responsabilidades por ter medo de ser penalisado ao ajudar a terminar o sofrimento, colocando no doente a culpa do sofrimento, colocando no outro a origem do mal, do tipo "ora carrega lá a tua cruz até não teres mais forças que eu não posso intrevir na providencia divina,se a carregas deves estar a pagar alguma, eu não posso terminar com o teu sofrimento se não vou ser eu a carregar isso por ti". Concordo contigo em relação ao que afirmas no final, "saber que os que partem, partem de bem comigo", até porque como acredito na vida após a morte, prefiro imaginar que os encontro em bem comigo outra vez,
Maria João

Maria João

 
At 12:43 da manhã, Anonymous Anónimo said...

ola, vimos por este meio convidar a participar em www.luso-poemas.net
é um espaço fantastico que certamente irá adorar.
apareça:)

 
At 10:11 da manhã, Blogger Ana Isabel said...

Li este seu post ontem à noite e quis colocar logo um comentário mas as palavras ficam, por vezes, tão longe do que sentimos que, nessa circunstância, é pelo silêncio que melhor nos expressamos. Talvez não de forma tão afirmativa como a Maria João, eu quero, ou preciso, ou apetece-me acreditar muito, numa forte possibilidade de vida para além da morte, e no reencontro que isso possa significar, mas apesar disso, sublinho todas as suas palavras.

 
At 10:12 da manhã, Blogger Luis Eme said...

Mas és tu que decides... agora um médico tem de decidir pelos outros, e é mais complicado... e depois há casos e casos.

É uma questão demasiado complexa, e muito pessoal, porque tem a ver com os valores em que se acredita e que fazem parte de nós.

 
At 12:38 da tarde, Blogger maria said...

Henrique,

mais um tema profundíssimo que aqui trazes. Não tenho arcaboiço para te responder a tantas e pertinentes questões que aqui levantas. Mas vou fazer a minha leitura de algumas delas...e linkar, claro! :)

 
At 2:45 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Aceitar a vontade de alguém que não quer prolongar um sofrimento sem cura ou a quem prolongam artificialmente a vida, quando em coma irreversível,é um acto de misericórdia. Rec0mendo a todos a leitura de Os Thibault, de Roger Martin du Gard, onde, creio, surge pela primeura vez o tema da eutanásia.Pelo menos foi lá que eu o vi literatriamente tratado pela 1ªvez.
Francisca

 
At 6:43 da tarde, Blogger Lourenço Bray said...

Posso dizer que há tempos tinha uma opinião e agora continuei a tê-la. Em abstracto, sou a favor do princípio da eutanásia. É um tema bastante complexo. Comentando apenas a notícia, penso que compreendo porque existe essa diferença nas respostas de 39% para 24%. No primeiro caso a pergunta é mais abstracta, no segundo, os 24%, já implica o respondente comprometer-se com um cenário que ainda não conhece.
Eu trabalho na area da estatística e aposto que se a pergunta fosse:
É contra a legalização da eutanásia em toda e qualquer situação? a percentagem de "nãos" seria superior à percentagem de "sins" da pergunta do DN, o que consiste um aparente paradoxo.

Falar da legalização da eutanásia em termos abstractos é tão complicado como falar da legalização do aborto. Mesmo antes desta nova lei do aborto, que se centrou na questão de ser livre e do prazo de 10 semanas, já tinham existido vários avanços, como abortos em caso de mal formações graves do feto, perigo de vida para a mãe, violação etc. (apesar de muitos médicos serem contra mesmo nesses casos extremos) A questão da eutanásia também tem muitas variantes e um debate ficará facilmente inquinado por exemplos extremos e demagógicos, quando é uma situação relativamente rara, apesar de tudo. No outro dia falávamos de tourada para os defensores dos animais radicais, e eu acho que a eutanásia às vezes é uma bandeira contra a influência da religião na medicina.

É muito mediática e sensacionalista, ao contrário do aborto que era um problema grave.

Não me revejo no paralelo com a situação de ajudar alguém a entrar na vida, acho que há uma enorme diferença. Ajudar alguém a nascer é puxá-lo para junto de nós, do conhecido, ajudar alguém a partir é dizer-lhe adeus e é algo bem mais triste. Inevitável mas triste mesmo assim. Independentemente das crenças religiosas e filosóficas de cada um, a morte implica uma perda e essa traz ao de cima sentimentos que às vezes nem suspeitávamos que tinhamos. É claro que existem culturas onde isto é visto de outro modo, quase como uma festa, mas todas essas culturas estão imersas em crenças e filosofias demasiado alienantes para meu gosto. A vida fez-se para ser vivida e combatida.

 
At 6:50 da tarde, Blogger Lourenço Bray said...

Só mais uma achega, li recentemente um testemunho de uma vítima de tumor cerebral que disse que o facto de saber que ia morrer não o fez ficar obcecado com o facto de ir morrer, mas sim com o facto de estar vivo. E encontrou uma felicidade enorme. É por isso necessário, ao debater isso, debater com base em casos concretos. O que é certo é que, tal como o Henrique, acho que a escolha deve ser sempre entre o doente e a medicina e em certos casos a família (coma, inconsciência etc.) Não deviam existir mecanismos automáticos, cegos, de uma moral imposta, fora do controlo dos intervienientes humanos. A intevenção de Deus já foi significativa ao criar o cancro e escolher as vítimas. Deixe-se aos homens que estão vivos a escolha da forma de lidar resto.

 
At 1:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Obrigado a todos pelos comentários. Irei pensar melhor neste assunto.

 

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