16.1.08

O FIM DA VIOLÊNCIA

Dizia Kant que o paternalismo é o pior dos despotismos. Não tenho a certeza de que tenha sido Kant a afirmá-lo, nem que o tenha afirmado deste modo. Para o efeito, pouco importa. A frase é boa e ninguém me cobrará imposto pela incorrecção, caso exista. O paternalismo é, sem dúvida, o pior dos despotismos. Porque o paternalismo é traiçoeiro, leva-nos a crer na sua bondade, faz-nos sentir seguros e apoiados, para nos fragilizar quando for o momento de nos dar o golpe. E esse momento chegará, não tenham dúvidas. O momento de sermos golpeados chegará, mais tarde ou mais cedo, surpreendendo, então, os nossos votos de confiança, a nossa cumplicidade, a nossa entrega, a nossa fé, a crença de que por aquelas bandas o medo poderia viver descansado. Mas o medo nunca pode viver descansado. Os paternalistas sabem que o medo não pode viver descansado, pois ele é o garante da sobrevivência do paternalismo. Se não sentirmos medo, precisamos de um pai que nos apoie, que nos sustente, que nos abrigue, que nos proteja de quê e para quê? Podia pôr-me para aqui a dar exemplos. Exemplos, infelizmente, não me faltam. Mas chamo a vossa atenção para três fenómenos, de certa forma recentes, que podem servir de prova ao que pretendo afirmar: o aumento exponencial do recurso a sistemas de videovigilância, a famigerada Lei do Tabaco, as intervenções da ASAE - Autoridade de Segurança Alimentar e Económica. Todos estes fenómenos estão de algum modo relacionados com a atitude paternalista do Estado, uma atitude que se alimenta do medo como os vampiros se alimentam do sangue. Podemo-nos interrogar, e devemos, sobre as boas intenções do Estado quando se mostra tão preocupado com as nossas saúde e segurança. Por que razão, roubados que somos todos os dias, violentados na carteira que vamos senso todos os dias, temos nós que ser saudáveis e estar seguros? Para que o Estado, obviamente, também se sinta seguro na forma como nos rouba e invade. O Estado quer apenas continuar a ir-nos aos bolsos, mas sem sujar as mãos e com mais saúde. Já não se trata apenas de zelar pela segurança dos cidadãos, de actuar em nome do seu bem-estar. Trata-se de fazê-los acreditar, aos cidadãos, através da propagação do medo, do receio de ser censurado, vigiado, multado, apontado, trata-se de fazê-los acreditar, dizia eu, que o Estado está, de facto, a zelar por nós como um pai zela pelos seus filhos. O que o Estado nunca entenderá é que não é nosso pai, que pai temos só um e não é, certamente, o Estado. Freud, aplicado a este contexto, até tinha alguma razão. Antes que o estado nos foda a mãe, ou seja, a liberdade, o melhor será mesmo que matemos… o pai. Até lá, porque andamos muito ocupados a ganhar os tostões que o pai nos saqueará, deixo mais um poema de Gottfried Benn, a pensar em coisas tão óbvias que me parece escusado aprofundá-las:

RESTAURANTE

O sujeito lá do fundo pede mais uma cerveja,
para mim ainda bem, assim não preciso censurar-me
por também sorver uma nessa altura.
Pensa-se logo que se está contaminado,
eu li mesmo numa revista americana
que cada cigarro encurta a vida de trinta e seis minutos,
eu cá não acredito, possivelmente a indústria de coca-cola
ou uma fábrica de pastilha elástica estava por detrás do artigo.

Uma vida normal, uma morte normal
também não é nada. Também uma vida normal
leva a uma morte doente. Sobretudo a morte
não tem nada a ver com a saúde e a doença,
serve-se delas para os seus próprios fins.

O que é que você acha: a morte nada tem a ver com a doença?
Quero dizer: muitos adoecem sem morrer,
portanto aqui há qualquer coisa diferente,
um fragmento de dúvida,
um factor de incerteza,
a morte não está tão claramente delimitada,
também não tem foice,
observa, espreita do canto, refreia-se mesmo
e é musical numa outra melodia.
Gottfried Benn, 50 Poemas, versão de Vasco Graça Moura, Relógio D'Água, Janeiro de 1998.

3 Comments:

At 9:07 da tarde, Blogger GRAFIS said...

À parte as diferenças conjunturais, consigo encontrar alguns paralelismos com o “E(e)stado” que se foi instalando após o golpe militar de 26 de Maio de 1926, e vê só onde as “medidas paternalistas” de então nos levaram nas décadas seguintes...
Agora poderão dizer que temos a Europa, mas eu começo a pensar se a Europa não será o lobo na pele da ovelha.

 
At 10:47 da tarde, Anonymous Anónimo said...

belo e lúcido post, excelente poema.
e, grafis, creio que a europa é
mesmo o lobo na pele de ovelha.
mais exactamente, o lobisomem.
que se está rentando para nós, que não temos asaes nem esbirros estipendiados.
a absoluta falta de vergonha do estado vai caindo sobre nós como um nedrume.

 
At 1:57 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Trata-se mesmo de Kant, em "Über dem Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Prazis" ("Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto em teoria mas nada vale para a prática"), obra de 1793. Este é o trecho:
"Eine Regierung, die auf dem Prinzip des Wohlwollens gegen das Volk als eines Vaters gegen seine Kinder errichtet wäre, d. i., eine väterliche Regierung (imperium paternale), wo also die Untertanen als unmündige Kinder [...] ist der grösste denkbare Despotimus (Verfassung, die alle Freheit der Untertanen, die alsdann gar keine Rechte haben, aufhebt)." (Minha tentativa de tradução: "Um governo, que fosse erquido com o princípio da boa-vontade em relação a seu povo, como um pai para o seu filho, isto é, um governo paternalista (imperium paternale), onde, pois, os súditos são crianças imaturas [...] é o maior despotismo concebível (a Constituição revoga toda a liberdade dos súditos, que então não têm qualquer direito)."
Sinceramente,
Pádua Fernandes

 

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