3.6.08

CORTA

Ontem fui cortar o cabelo, gesto quotidiano frugal mas com implicações ruidosas neste que vos escreve. A conversa é sempre a mesma. Perguntam-me como vai ser, responde-lhes que curto. Seguem-se um momento de espanto e o comentário costumeiro: mas que mudança radical. Depois explico que não, que a mudança não é radical. Que, porque detesto ir ao barbeiro (agora cabeleireiro), apenas corto o cabelo duas vezes por ano. Portanto, não há mudança alguma. Há apenas a repetição de um gesto talvez invulgar. Também só rapo a barba uma vez por mês, para poupar nas giletes e por pura preguiça (há quem lhe chame desleixo). A rapariga sorri, julga as minhas opções estranhas, diz que tenho um cabelo bonito (usa óculos, deve ver mal), lava-me a cabeça, massaja-me o coro cabeludo (único momento em que não me apetece zarpar dali para fora), senta-me defronte a um espelho. Eis a fase em que tudo desmorona à minha volta. Nunca consegui frequentar ginásios por causa dos espelhos, detesto cortar o cabelo pela mesmíssima razão. Nada há que me aborreça mais do que ver-me ao espelho. Tenho um ar mesmo aborrecedor. Mas ontem a coisa correu bem. A moça era simpática, ensinou-me a diferença entre o gel e a cera para o cabelo, sacudiu-me os pêlos dos ombros com esmero e até alguma sensualidade. Só não lhe dei uma gratificação porque o corte foi caro e eu ando sem dinheiro.

4 Comments:

At 1:13 da tarde, Blogger jp said...

Quando um amigo meu não me rapa, vou a um barbeiro, ainda barbeiro, que frequento desde puto, também não gosto, principalmente da espera, mas custa apenas 5 euros e a conversa sobre a União Soviética e a luta dos camaradas valem o dinheiro.

 
At 2:03 da tarde, Blogger Livraria Poesia Incompleta said...

amigo henrique, lembra-te do cesariny:
barbeia-te com ódio a barba ajuda

 
At 3:33 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Eu agora também vou a cabeleireiros, em vez dos antigos barbeiros. Um dia, a rapariga do cabeleireiro do meu bairro interpelou-me, enquanto me nivelava as patilhas.
- Tem vindo muitas vezes, senhor F. O seu cabelo não cresce assim tanto.
Eu, sem óculos e entregue ao carinho das suas mãos, limitei-me a sorrir e a encolher os ombros, por baixo de uma capa escura que lembrava os hábitos de certos abades.
- Parece-me que gosta deste ritual - prosseguiu ela. - Gosta da parte em que lhe lavo o cabelo, não é?
- De facto... - tentei responder.
- Eu sei como os homens são. Até aposto que sai daqui com a minha imagem na sua cabeça. Sabe-se lá para que fins imaginários...
Eu comecei a sentir-me constrangido. O que estava ela a tentar insinuar?
- O que está a tentar insinuar?
- Que vocês escritores são todos iguais.
- Como sabe que eu escrevo?
- Ora. Aqui no bairro tudo se sabe. Nunca me enganou com esse esgar. Parece uma câmara de filmar, a registar tudo.
Eu ruborizei-me, não dando razão à acusação dela - absolutamente falsa - mas pelo modo como falara, mais alto que o aceitável. A outra rapariga das unhas olhou para nós durante dois segundos.
- Importa-se de falar mais baixo? - pedi-lhe.
- Está bem, pronto. Ficamos assim. Mas vai prometer-me uma coisa...
- Sim?
- Quero que escreva qualquer coisa sobre mim.
- Sobre si?
- Exacto. Gostava de entrar numa das suas histórias.
- Não sei como o conseguir - tentei esquivar-me.
- Eu é que não sei, mesmo! - assegurou impaciente. - Trate de me meter numa história o quanto antes, ou começo a espalhar o boato que você só vem para aqui para salivar!
- Salivar?
- Combinados?
Eu pensei durante alguns segundos, e rendido perguntei:
- Importa-se que seja num comentário de blog?

 
At 11:31 da manhã, Blogger hmbf said...

NP, eu ia a um que só falava de gajas. E tinha umas fotografias espalhadas pelo salão que não te digo nada.

Changuito, lembro sempre.

Fernando Dinis, bela estória.

 

Enviar um comentário

<< Home