Fragmento # 62 - Protesto mudo
Para o Henrique Manuel Bento Fialho
O País vive hoje um buzinão contra o aumento do custo de vida e a especulação dos preços dos combustíveis. Não entendo a forma do protesto, porque o meu protesto é o silêncio, há muitos anos que protesto assim. Sou mulher, não casei, não tive filhos, nunca tive uma carreira, não vou ao cabeleireiro, só arranjo trabalhos precários, por vezes não me pagam, nunca trabalhei das 9h às 17h, não abandonei Portugal, nunca tirei a carta de condução e nunca tive um telemóvel. Não inflaciono o custo de vida de ninguém assim, muito menos os ouvidos. Ando de transportes públicos ou a pé, mas a maior parte do tempo nem saio para o exterior, estou às voltas no mesmo sítio. Eu protesto parada e em silêncio, porque interiormente sou um buzinão contínuo. Custa-me tanto a minha vida e ela não tem preço, por isso o meu silêncio é também contra o aumento do que não tem preço. Resta-me o protesto mudo. O meu silêncio no entanto ainda fala, mas de um modo enigmático, paradoxal, há muito que não digo coisa com coisa e sei que assim ninguém me dá crédito. Eu quase não existo, sou um absurdo ou quase-nada em protesto no dia-a-dia quando pinto, resta-me a prática da arte do silêncio que fala.
Maria João
11 Comments:
abraço caloroso do fialho
vale mais esse silêncio do que infinitas buzinas.
abraço
Obrigado por me ajudar no meu trabalho sobre Duchamp com seu post do ano de 2007 sobre a Fontaine! Preciso questionar sobre o questionamento de Duchamp.
Abraços
Vinicius vmstienbach@gmail.com
abraço ao fialho e ao np
vinicius: Duchamp jogava xadrez e sabia muito sobre o silêncio que fala.
Maria João
Querida Joãozinha
Estou com vocês no silêncio revelado e no buzinão contido.
O silêncio dá algum sentido à ausência de sentido.
E mesmo sem sentido é forçoso continuar.
Bjs
Sara
Boa,Maria João! Ficas sempre bem quando escreves. Carreira para quê? Carta para quê? Também eu ando de transportes públicos e a pé. Numa coisa me ultrapassas: não tens telemóvel, que inveja! Como consegues?
Queria dizer mais coisas, estou inspirada, mas para quê? Vamos poupar a palvras, que também se gastam
Beijinhos
Beijinhos para as Saras!
:)
Maria João
Refaço minhas algumas das tuas palavras
(...)sou homem, também não casei, acho que não tenho feito filhos, também nunca tive uma carreira, vou ao cabelereiro de dois em dois meses, só tenho trabalhos de merda, pagam-me mal como o caralho, sempre preferi o turno das 15 às 23 do que das 9 às 17, abandonei Portugal, nunca tirei a carta de condução e tenho tido telemóveis doados por amigas caridosas. (...) Também ando de transportes públicos ou a pé, passo muito tempo no exterior, se puder a viajar, ainda que às vezes pareça que não saio do mesmo sítio.
Eu quase não existo da mesma maneira que tu não existes , sou um absurdo afim.
Aceita aquele abraço, o incestuoso :)
Olá, Vitor Vicente!
É bom ir encontrando pessoas normais. Já tinha medo de que o mundo fosse aos quadradinhos.
(uma ressalva, não me quero armar aos cucos: tenho telemóvel, como já disse - às vezes doado por amigos caridosos,às vezes comprado: "o mais barato que tiver, por favor! - caem-me todos à água (no alguidar da roupa, ah! não tenho máquinas de lavar! na sanita, etc.)
Tenho filhos também. Mas não tenho carreira, nem emprego, nem carro, nem máquinas, etc, etc.
Mas posso dizer que se passa muito bem sem.
Descobri também que o dinheio nunca chega, quer se tenha muito ou pouco. Ou vice-versa.
Abraços
esse teu protesto é o que mais agrada a sujeitos como o Sócrates, Maria João...
já era assim com o Salazar. o fulano adorava protestos mudos...
Vitor: abraço incestuoso
Sara:ainda bem que somos normais!
Luís: o meu silêncio ainda fala, só que sou um absurdo, não digo coisa com coisa e pinto todos os dias. Queres fazer um movimento pelo voto nulo (nulo não é em branco) com pessoas normais para chatear os politicos? É também uma acção contra a abstenção.
:)
Maria João
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