RESPONDENDO À MARIA JOÃO
A Maria João diz que gostava de ouvir a minha opinião sobre este assunto. De certa forma, ela já ouviu a minha opinião sobre aquele assunto. Estávamos em casa dela, com o Nuno Moura, à volta de uma mesa recheada com camarões e vinho branco gelado. A minha opinião foi simples, mas causou algum mal-estar. Tanto quanto é possível à volta de uma mesa recheada com camarões e vinho branco gelado. E a minha opinião foi: depende da perspectiva. Isto não é resposta que se dê a nada, reconheço-o, pois é resposta que serve para tudo. Mas se há coisa que abomino são respostas, mais ainda respostas fechadas sobre certezas. Não tenho certezas algumas quanto ao que seja arte ou deixe de ser, muito menos quanto ao que seja a maior obra de arte de todos os tempos. De um ponto de vista muito pessoal, a maior obra de arte de todos os tempos são duas: a Matilde e a Beatriz, as minhas filhas. Para mim, não há obra de arte que se lhes compare. É compreensível. Mas que quero eu dizer quando digo que são uma obra de arte? O que é uma obra de arte? Os atentados de 11 de Setembro de 2001 podem ser uma obra de arte? A invasão do Iraque foi uma obra de arte? O holocausto? Para mim não, mas concedo que para outros sim. Mas por que não? Podia dizer que a arte é criação e não destruição, mas estaria a ser redutor e demasiado simplista. Coisa que abomino tanto quanto certezas absolutas. Arte pode ser destruir, na medida em que a destruição implique recriação; pode ser “desnascer” e “desconstruir” com o intuito de fazer renascer e de fazer reconstruir. Mas arte não é comunicação. Para comunicar as pessoas dialogam, não fazem arte. A entrada da Logos sobre Arte, da responsabilidade de M. Antunes, faz uma resenha curiosa seguindo os seguintes conceitos: imitação, criação/poiesis, expressão, comunicação, jogo, exteriorização, produção, sublimação… Podemos aprofundar qualquer um destes conceitos, podemos sobre ele formular as mais variadas teorias que a pergunta colocada pela Maria João não será respondida. Não é possível responder a uma questão daquelas teorizando sobre ela, só é possível responder-lhe de um modo muito subjectivo, um modo que estará invariavelmente circunscrito pelos padrões éticos, mais que estéticos, de cada um. Por que faço esta distinção? Independentemente dos padrões estéticos de cada um, sempre amplamente relativizáveis, o horrível pode ser belo. Lembro-me de alguns expressionistas austríacos que muito aprecio, gente que regurgitava para posteriormente ingerir o próprio vómito, defecavam, urinavam, mutilavam-se, masturbavam-se durante as suas performances. Há também a body art, ligada ao happening e à performance, com tipos a sangrarem-se até ao desmaio, tipas a lerem poesia durante a execução de operações plásticas, outros a pendurarem-se em ganchos cravados na carne, etc, etc, etc. Em tudo isto podemos ver arte, em tudo isto consigo ver arte, e vejo aquele belo horrível que é sempre muito saudavelmente discutível. Mas por que não vejo arte num atentado terrorista, num fenómeno político violento, causador de morte, sofrimento, provocador de emoções limite, de sensações medonhas e terríveis? Por que não vejo eu arte nos atentados de 11 de Setembro de 2001? Porque não consigo dissociar a arte da liberdade, valor ético por excelência. O que há naquele atentado, independentemente de quem o perpetrou e das razões que estiveram na sua origem, é um gesto violento que se impõe à liberdade alheia. Ora, a arte é livre; para sê-lo, não pode impor-se ao outro; não pode sufocar, no caso exterminar, o "espectador". Há uma voluntariedade na performance que escapa ao acto puramente terrorista, o qual se impõe ao outro não lhe dando sequer a hipótese de escolher fazer parte ou não daquele processo. A arte não se impõe, muito menos a "grande arte", ela apenas se disponibiliza ou, se preferirem, se (pre)dispõe desafiando a predisposição do "espectador", o qual, por sua vez, pode transformar-se, enquanto interveniente neste processo, numa certa espécie de artista. O que houve naquele atentado foi uma agressão fechada sobre si própria, sem direito a opção, contra tudo aquilo que eu, cá no meu anarquismo filantrópico, preso e admiro: a liberdade do homem se espantar ou não se espantar conforme a sua vontade. Que alguém pense de outra forma é perfeitamente aceitável, desde que haja consciência das implicações dessas outras formas de pensar. Um exemplo: se o Stockhausen, que viu ou não viu ou deixou de ver, não interessa, arte naquilo, fosse apedrejado na rua por um qualquer indivíduo ou grupo de indíviduos que vissem nesse gesto uma manifestação artística, se ele estivesse a ser apedrejado contra a sua vontade, eu intercederia em seu favor. Não ficaria a olhar aquele acto como se estivesse a olhar um Caravaggio. Nem intercederia por ser contra a arte. Tão-somente por ser, mais que tudo, a favor da liberdade.
4 Comments:
A dissociação da estética da ética (na Cultura Ocidental),já vem de muito longe; creio que desde o Renascimento. Mas, teria de consultar uma História de Arte, para me certificar. Até porque nessas coisas lá vêm à carga dos neo-platonismos, as doutrinas várias, etc.
Vi um concerto com Stockausen, em Salzburgo, no fim dos anos 80.Acredito que o compositor foi mal interpretado e vítima de "jornaleiros" sensacionalistas e primários, que quiseram explorar o justo horror e indignação do público.O homem já era octagenário em 2001 e perante as proporções do caso, resolveu pedir desculpa.
Evidente que a eficácia e espectacularidade dos atentados mexem avassaladoramente com os nossos sentidos, tal como os grandes produtos artísticos. Mas, se pensarmos que o nosso pai ou o nosso filho, podiam lá estar, ficamos combalidos e revoltados.
Eu admiro os seres vivos e não os humanos em especial, de quem não espero grande coisa.Isto mesmo ando há muito a dizer nos meus livros, embora alguns me brindem com "clichés" recentes, que andam por aí, tipo: "sem qualidades". Isto vem a propósito de que o grande pintor Giotto apunhalou um seu escravo, para pintar com a maior veracidade o rosto de um Cristo agonizante. As pirâmedes do Egipto, essa maravilha da Antiguidade foram erguidas por escravos que eram chicoteados até à morte e nem sequer eram alimentados, pois todos os dias vinham da Núbia escravos "frescos", para substituir os mortos na véspera.
Quem julga que o nazismo foi o primeiro grande genocídio da humanidade, está mal informado, ou quer estar.
Logo ética/estética depende sem dúvida das épocas, das sociedades, das prespectivas, das crenças, etc, etc. Até porque o tal Bin e amigos, transbordaram de "ética" a comemorar a tal "obra de arte".
Henrique,
No menu camarões vinho branco também lá estava o Luís, eu acho que não falamos do 11/9 nesse dia -onde eu cozinhei um cheesecake para a sobremesa. Deste-me a tua opinião sobre este assunto no menu bacalhau espiritual+salada+vinho EA e bolo de laranja, só cá estava o Nuno. A minha melhor obra é na area da culinária, porque gosto de cozinhar, comer e ver as pessoas felizes a comerem as obras que produzo, mas não obrigo ninguém a comer, se não gosta.
A liberdade é um factor muito importante nestas questões e concordo contigo em vários aspectos, nomeadamente, que é dificil ter certezas e a resposta terá sempre uma componente individual.
Obrigada
Maria João
Inês, você nunca me vai perdoar a leitura pouco inteligente que fiz do seu último livro. Quase me sinto tentado a pedir-lhe desculpa, mas tenho a certeza que me levaria a mal se o fizesse. Na conclusão estamos de acordo: «ética/estética depende sem dúvida das épocas, das sociedades, das prespectivas, das crenças, etc, etc».
Maria João, qualquer um dos menus foi excelente. Devido à tua presença, claro.
henrique: menus maravilhosos devido à tua presença também, para além de levares aqueles vinhos maravilhosos e não cozinhei tudo!
Vida involuntária: concordo com a sua conclusão de que "ética/estética depende sem dúvida das épocas, das sociedades, das prespectivas, das crenças, etc, etc. Até porque o tal Bin e amigos, transbordaram de "ética" a comemorar a tal "obra de arte".
Maria João
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