CARTA ABERTA AOS AUTORES DE CARTAS ABERTAS
Excelentíssimos autores de cartas abertas, considerando-me eu pessoa de espírito aberto, venho com a presente reclamar a minha sincera apreensão perante a vertigem de cartas abertas que todos os dias me chegam sem que à minha pessoa sejam dirigidas. Mais duvido que os reais destinatários dessas missivas algum dia passem os olhos, fugazmente que seja, pelas mesmas. Apraz-me verificar, como é óbvio, tratarem-se todas as epístolas de magníficos hinos à indignação. Fosse necessário sublinhá-lo, diria mesmo sentir-me universalmente de acordo com o espírito rebelde, revoltado e revoltoso do palavreado exercido no âmbito da mais digna liberdade que nos foi outorgada pelos conquistadores do regime democrático. Não obstante, importa refrescar vossos nervos inquietos com a razoabilidade de um certo cepticismo. Em 34 anos de eleições livres foi este país governado, fundamentalmente, pelos ditames ideológicos de duas facções partidárias cuja essência pode ser diferenciada, de modo sucinto, com a velha máxima lusitana a merda é a mesma, só muda a consistência. Se a intenção de vossas admiráveis missivas for contribuir para que tudo mude ficando exactamente na mesma, recebam deste humilde leitor as mais sinceras felicitações. Para mais não servirão palavras como as que por vossa pena todos os dias me chegam. Claro está que à força de tanto baterem na tecla, algum calo há-de começar a desenhar-se na ponta dos dedos. Não mais que isso, lamento. Diz-me a experiência e a indução que uma vez promovido, nenhum incompetente chegado ao topo será alguma vez despromovido. Como sucede com o cuco, é a espécie administrativa um parasita que vive à custa de milhentas outras espécies hospedeiras. Por mais que dêem cabo dos ovos, saltam de ninho em ninho, despreocupadamente, sem nunca verem penalizada a porcaria que vão realizando. Antes pelo contrário: saltando de promoção em promoção, sempre no topo, esta ave parasita tem ainda o condão de, com seu canto lamentador, lograr convencer os néscios de vitais necessidades prontamente satisfeitas com o sacrifício dos demais. Contra cenário tão indigno não bastará o palavreio de vossas epístolas. A insuficiência já nem tem desculpa. Que mais podeis fazer? Arranjai fisgas, disparai contra os cucos em pleno voo. Que cartas abertas mais não serão que um breve instante bem passado onde pouco mais podereis do que exibir a inquestionável elasticidade da vossa verve.
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:-)
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