15.1.09

O CORAÇÃO É ÓLEO


Se um homem em sonhos se vê num espelho vendo seu
rosto, cautela: isso quer dizer outra esposa.
Papiro Chester Beaty III, Museu Britânico (Tebas, 19ª Dinastia)


Se um homem sonhasse, e a si mesmo se visse a sonhar
um sonho, a si mesmo num espelho se vendo,
vendo que o coração é óleo a percorrer
o sangue, qual ralo para aonde se movesse,
seus ossos como um barco e o intestino pronto
a navegar no vento da sua respiração,

se isto é o seu olho no espelho a ver
o seu olho no sonho, a ele mesmo se vendo,
num espelho vendo o seu olho a ele mesmo
se vendo em um sonho num espelho, seu rosto
reflectido no óleo que se encrespa de vez
em quando no vento da sua respiração,

o espelho derivará e o coração assentará
como vidro na armação dos seus ossos na parede
da sua respiração, delgado seu sangue como papel e prata,
reflectindo o seu rosto em seu coração num espelho
num sonho em que a si mesmo se vê vendo-se
num espelho vendo

que os ossos boiarão e o coração há-de despedaçar-se,
os seus ossos na garganta e o intestino esticado e tenso
como veleiro ao vento da sua respiração, o seu sangue
cheio de vidro estilhaçado e o rosto como papel desfeito
vendo-se a sai mesmo no espelho do seu coração
que como óleo se derrama no espelho do seu bafo.

Trad. Júlio Henriques.


Robert Bringhurst, nascido a 16 de Outubro de 1946, em Los Angeles, estudou arquitectura, linguística, física, literatura comparada, filosofia, entre outras matérias. Foi professor de escrita criativa, literatura e história, nomeadamente história da tipografia. Estreou-se na poesia em 1972, com o livro The Shipwright's Log. Em 1982 antologiou a sua poesia num volume intitulado The Beauty of the Weapons: Selected Poems 1972–82, publicado entre nós, numa versão bilingue, pela Antígona. Poeta de espírito errante, com especial interesse nas chamadas línguas mortas e no design tipográfico, publicou ainda algumas traduções e vários livros em prosa.