13.1.09

APRENDER A CONTAR #60

CASA GUIDI WINDOWS

«Sei agora que devo morrer». E, acrescentando algumas palavras inconvenientes, saiu da sala. Elize deitou-se no chão, esperando que R. O. a pisasse, o que este fez durante algum tempo, e marcando-lhe as costas e o peito. Mas Elize não reagiu, antes suspirou, por vezes, deixando adivinhar um insólito prazer na prolongada tortura. Ouviu-se então um tiro. Correram ao quarto de Alma, que jazia por terra com uma poça de sangue a escorrer da cabeça e da garganta. Elize beijou-a nos lábios e nos seios, bebendo o sangue. R.O., sem se mover, assistia a esses preparativos de morte. «Comê-la-emos», disse Elize. Levaram-na para a cozinha, onde a cortaram aos bocados, depois de Elize ter beijado demoradamente todas as partes do corpo de Alma. «Não achas estranho que uma mulher se mate com um tiro?» perguntar-me-ia R.O. mais tarde. «A sua carne sabia a um fruto divino». Não lhe ouvi mais nada sobre Alma, nem sobre os insólitos destino e morte de Elize. Ouvi dizer que ela se refugiara no litoral, onde vendeu o corpo às passageiras tripulações de fétidos cargueiros. A doença consumiu-a, até ao estado em que a vi nas imediações do velho mercado de escravos. Os farrapos que lhe cobriam o corpo deixavam adivinhar um antigo esplendor, e os descontrolados movimentos da cabeça e dos membros não me impediram de notar o belíssimo brilho dos seus olhos. Pagámos-lhe um copo de aguardente, na taberna do cais, e enquanto a insultávamos e lhe mexíamos nos seios, ela murmurava incoerentes maldições com voz rouca. Ao trazê-la para o ar livre, devolvendo-lhe espaço e a mobilidade, reparei nos seus braços, que tanto amei, devorados pela infecção. Nessa noite bebi a água fétida dos esgotos, e contei esta história aos sinistros habitantes do lodo.

Nuno Júdice (1949), in Obra Poética (1972-1985), pp. 177-178, Quetzal Editores, 1991.

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