14.1.08

PAISAGEM

Há coisa de seis anos tive a oportunidade de visitar, no Museu Serralves, uma exposição de João Vieira intitulada Corpos de Letras. João Vieira aparece geralmente apresentado como um pintor que cruza texto com imagem, experimentando o aspecto gráfico da escrita muito à maneira do que foi realizado por diversos poetas da chamada poesia experimental. Este eventual cruzamento de dois signos de natureza distinta pode também ser entendido de um modo simbiótico. Se assim for, deixará de haver um cruzamento entre escrita e imagem, já que ambos passam a constituir uma mesma realidade. É curioso que no domínio da escrita a dimensão imagética seja várias vezes negligenciada em lucro do sentido, o mesmo não sendo verificável, por exemplo, com a música. Os escritores trabalham demasiado a musicalidade dos seus textos e descuram o lado imagético da palavra, o qual gera relações de extrema dificuldade com o leitor – já que este, ao ler, procura sempre retirar um sentido, um significado, do que está a ler, não se preocupando de igual modo com esse significado quando escuta uma peça musical ou quando aprecia um quadro pendurado numa parede. Por diversas razões que não vale a pena aflorar, a escrita ainda se mantém refém do sentido. Outras formas de arte há muito mandaram o sentido às favas, instituindo na obra de arte um elevado grau de indefinibilidade. Nem sempre é assim, mas tende muito a que assim seja. Diz-se que pensamos por palavras, que o nosso pensamento se processa a partir de associações de palavras, que as próprias imagens que formamos no pensamento não são senão palavras despoletando, numa química provavelmente inexplicável, impressões figurativas. É muito mais simples dizer-se que o pensamento resulta de associações entre os vários dados dos sentidos, que algures no nosso cérebro a memória de um cheiro funde-se com um som, ambos com uma imagem, a sensação de uma textura e que, de toda essa interligação, surgem então as palavras. Mas e se os cheiros forem já palavras? Talvez a palavra seja uma região transfronteiriça, o lugar que nos faz sentir livres mesmo quando não estamos senão presos (desde logo, às próprias palavras). Sem dúvida que as palavras têm um poder imenso. É através delas que estabelecemos processos de comunicação, com todos os problemas que daí advêm; mas igualmente por ser por intermédio das palavras que nos localizamos no espaço e no tempo. Mais do que libertarem-nos, elas convencionam-nos. Jogar com elas é, pois claro, um jogo perigoso. As palavras são o que nos resta enquanto o silêncio não for solução, enquanto o corpo se mantiver activo e actuante, enquanto buscarmos no mundo o ruído irremissível do desejo. Torna-se fácil imaginar os nossos corpos como agregados de palavras articuladas num código desconhecido; ou como conjuntos de letras formando palavras novas, inventadas, desconhecidas, extravagantes, palavras em ruptura com toda e qualquer convenção organizadora do caos em que fomos concebidos e onde fomos lançados. Por isso mesmo, um texto espontâneo, automático, configura sempre o caos. Nós somos esse caos, o modo como lidamos com as palavras faz prova disso. Se o nosso corpo for uma palavra única, singular e irrepetível, uma palavra impronunciável, impartilhável, impraticável, então a morte é apenas uma borracha, é uma espécie de corrector ao serviço da natureza. Contudo, não será por nos apagarem da página que desapareceremos, já que as palavras perduram para lá do uso que lhes damos – mesmo quando não lhes damos grande uso. Debaixo do corrector, ficará a marca da nossa existência. Vincada na página, a marca da nossa existência será aquele relevo denunciando-nos sob camadas sucessivas de tinta. Nem simbiose, nem cruzamento. Paisagem, somente uma paisagem estática, silenciosa, irrelevante. O nosso destino ditado pelo esquecimento. E enquanto leitores uns dos outros, somos apenas a busca de um sentido para este perpétuo desalinho em que nos encontramos.

2 Comments:

At 11:20 da manhã, Blogger Darlan M Cunha said...

A palavra é genética, antecede meios e fins, indissolúvel de ti quanto do Outro (longe daqui a filosofia barata do “L’Enfer, c’est les autres”), do que quer que seja – já que tudo, longe ou perto, nos diz respeito. A palavra é genética, não capitula diante de preços, não se encabula sob ondas nem vácuos.
***

Sempre aqui neste Blog há postagens de alto gabarito, "mais que uma paisagem estática, silenciosa, irrelevante."

Abraço.

 
At 11:27 da manhã, Blogger MJLF said...

a dimensão imagética das palavras é o silêncio que elas contêm, uma espécie de quase-nada que acompanha o ruido das palavras no mundo - gostei muito desta tua reflexão.
Maria João

 

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