25.12.06

FELICIDADE


Gallon Drunk

Quando penso na felicidade lembro-me de guitarras, corpos suados, musculaturas soltas, danças delirantes que mais parecem ataques epilépticos. Ninguém pode ser feliz se não lhe for dada a possibilidade de desenvolver o seu próprio léxico, muito para lá das gramáticas, dos prontuários e dos dicionários. É importante que desenvolvamos o nosso próprio léxico durante a vida, que aceitemos os gestos que encerramos dentro do corpo como se esses gestos fossem o ritmo da nossa melodia mais íntima. É bom que tussamos, que deitemos para fora tudo aquilo que o espaço público nos rejeita. Só quando o espaço público for um reencontro de intimidades, só quando os desejos embaterem uns contra os outros fundindo-se, aceitando-se, só quando a recusa for um eco distante poderemos ser felizes. Um concerto, por exemplo, funciona como um desses espaços públicos onde muitos e diversos imos se tocam simultaneamente. Não acredito em demónios senão naqueles que construímos para nós próprios, demónios a que damos o nome de frustrações, recalcamentos, etc. Todos eles têm origem na interrelação que mantemos com a sociedade, com os outros, com o mundo, na sensibilidade com que percepcionamos e absorvemos o que nos está distante. Exorcismos, catarses e expurgações são pois uma das dimensões mais terapêuticas da arte, se a entendermos também como uma forma de expressão da tal interioridade prisioneira dos grilhões da vergonha, da consciência, da norma, da regra, da lei, ainda que facilmente aceitemos a importância dessa lei na regulação dos gestos, dos movimentos, dos passos que vamos dando no espaço público. A arte pode ser uma forma de tornar pública a intimidade, ainda que esta apareça sempre cifrada pelos particularismos e pelas limitações de cada linguagem. Sempre achei que o que há de melhor numa performance de Glenn Gould é o som da sua respiração, valendo o mesmo para o suor de James Johnston escorrendo-lhe corpo abaixo enquanto cospe sobre microfone as palavras que lhe vêm das entranhas.

3 Comments:

At 3:13 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Os Gallon Drunk nem se devem queixar muito do (in)sucesso - o "som" (particularmente intencional no caso) não será muito consensual... Apostavam sobretudo na devoção dos poucos seguidores, normalmente novos-cristãos do Bad Seedismo, portanto mau cinismo, que cavaram (neologismo derivado de Cave) quando o Nick saiu dos botequins e pensões ("O ah ear her walkin' Walkin' barefoot cross the floorboards ... Leakin' through the cracks") e foi nadar para o rio com a Kylie, e muito bem. De resto o Some Fool's Mess é bem capaz de ser o apogeu de um certo rock.

Também gostei muito do post sobre o Tom Courtenay. Da embalagem, das considerações que serviram de embrulho (época natalícia oblige) à música. Além de que soube muito bem voltar a escutar I spent so much time dreaming about Eleanor Bron

 
At 10:20 da manhã, Blogger Fábio said...

O sr. Johnston é membro actual dos bad seeds (substitui Mr. Blixa "Neubauten" Bargled).
Os Srs GD não logram a pujança dos Bad Seeds. Quanto ao mais concordo contigo. O teu blogue é uma fonte de riqueza continua.
Um abraço.
Felizes dias para ti

 
At 12:33 da tarde, Anonymous Anónimo said...

pedro: obrigado pelos acrescentos.
fábio: os bad seeds foram sempre mais pungentes do que pujantes.

 

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