Anselmo
Quando era criança brincava muito com exércitos de plástico e a minha história favorita era a d’O Soldadinho de Chumbo, um conto que, vim a saber mais tarde, foi escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen. Hoje estava a folhear um livro sobre a obra de Kiefer, não o Sutherland, mas o Anselm, e, tocado por uma forte nostalgia desses tempos, parei algum tempo a olhar um trabalho intitulado Bilderstreit. Trata-se, basicamente, de uma fotografia de dois blindados a apontarem para uma fortificação em forma de paleta. A fotografia tem também algumas inscrições em alemão, escritas a gouache e caneta. É um trabalho, na linha de outros de Anselm Kiefer, eivado de ironia, onde se mistura a iconografia da Segunda Guerra Mundial com formas associadas à criação artística, gerando, assim, uma metáfora representativa da sua própria atitude enquanto artista. Penso nisto a propósito de uma afirmação de Daniel Inneraritu, numa entrevista aqui mencionada: «ou os artistas compreendem a sua função social e a sua necessidade de serem compreendidos eles mesmos ou nada feito». Isto é muito polémico nos tempos que correm, pois, apesar de desde sempre os artistas questionarem a sua função no mundo e a própria arte nas suas obras, não lhes cabe compreenderem a sua função social como se fossem políticos, padres, médicos, fiscais das finanças, banqueiros ou taxistas. Não nego aos artistas uma função social qualquer, embora não esteja certo de qual, mas duvido que lhes caiba o esforço de compreensão dessa função. Quanto a mim, a função social dos artistas é produzirem arte. Não perspectivo outra função social mais compreensível, legítima e, por que não dizê-lo, louvável que essa.
6 Comments:
Não diria função social. Essa é uma leitura de tipo sociológico, enquadrada na globalidade da intervenção cultural. Mas é um facto que a arte actual regressou a um certo empenhamento político, competindo directa e críticamente com os media. Quando penso na função da arte penso em civilização. Se considerarmos uma perspectiva histórica podemos constactar que as artes precederam ou foram até motor de grandes mudanças civilizacionais, porque o seu campo de actuação sempre esteve dirigido às elites políticas e intelectuais. Mas no mundo actual, dominado por estratégias de mercado mediatizadas para o grande público, qual a função "clarificadora" das artes? Creio que vivemos hoje uma dissolvência angustiante das referências artísticas contemporâneas, esvaziadas pela profusão omnipresente da ilustração.
Foi bem explícito no post, Henrique, e volta a sê-lo agora. Concordo consigo. O que eu disse no meu comentário anterior apenas pretendeu reflectir sobre o seu texto. E à pergunta, "Não pode um poema de amor ser um poema político?", respondo, sim claro, desde que o poeta tenha essa intensionalidade, prévia ou contextualizada na obra. E como artistas e poetas não estão dispensados de ter um pensamento sobre o mundo, talvez devêssemos questionar se os criadores praticam suficientemente a resistência aos mecanismos do mercado, ou se, por outras palavras, os criadores ainda são motores de civilização.
um bom poema de amor é sempre um poema politico. Não porque o poeta tem essa intencionalidade, prévia ou contextualizada na obra, mas porque só o amor faz a verdadeira critica de valores, porque a criação e a paixão são as unicas formas de elevar a existencia dos humanos, as unicas formas de liberdade. Não é a intenção que faz a obra de arte, é a paixão pela vida materializada em forma estética e o seu resultado é o mais importante, a sua dimensão estética. Eu simpatizo muito com o Herbert Marcuse que defendeu que o potencial politico da arte se baseia na dimensão estética. Porque quanto mais a obra de arte é intencionalmente politica, imediatamente politica, menos revolucionária ela é. Para Marcuse a obra de arte só tem relevância politica como obra autonoma e a forma estética é essencial à sua função social, porque as qualidades da forma negam as da sociedade repressiva. O mundo nunca foi bom e a arte é a criação de novos mundos. O pensamento sobre o mundo dos poetas e dos artistas é um pensamento sensível que se materializa em formas estéticas, que quando são elevadas opõem-se à realidade establecida, através da própria forma. A forma estética é em simultâneo uma afirmação através da catarse, um acontecimento ontologico baseado nas suas qualidades especificas, no seu poder cognitivo, um libertação. Por isso, a unica função social e politica do artista é produzir arte, já agora, com uma forma estética elevada. O acto de criar um novo mundo quando se materializa numa forma estética elevada, autonoma, é revolucionário não apenas porque nega a realidade establecida, mas porque a transcende através da forma estética. A arte e amor são expressões da liberdade. Alternativas a isso? vão dar uma voltinha aos hiper-mercados, vejam muita televisão, vivam intensamente a psicose no mundo do trabalho, comprem um novo pópo, télele e etc...
Maria João
Não Henrique, não foi propositada a minha intensionalidade (de intenso), eu deveria mesmo ter escrito intencionalidade (de intenção), não fosse a maldita disgrafia que me assalta aqui e ali.
Também não quis abrir nenhum debate sobre intencionalidade estética... para isso Husserl já deu pano para mangas. Em todo o caso encontro-me entre os que associam intensamente (leia-se apaixonadamente) a velha tríade estética-ética-poética e entre os que pensam que há diferenças essenciais entre as intencionalidades em arte e em política, partindo do princípio que definimos arte dentro dos padrões correntes das linguagens artísticas, isto é, que não estamos a falar, por exemplo, da arte política, da arte diplomática, da arte de ensinar, ou simplesmente da arte necessária para fazer bem feito o que a cada um cumpre fazer no campo profissional.
«a função social dos artistas é produzirem arte»
Percebo o Henrique (que belo texto!) mas acrescentaria uma pequenina provocação, pois revejo-me nessa frase de Daniel Inneraritu.
Há artistas que criam arte à procura dessa função social. Os exemplos são inúmeros acho eu. Por exemplo, o Gogol queria ser uma espécie de escritor do Czar, educador da Rússia, com o Almas Mortas. Claro que ele acaba por fazer arte imortal quase sem querer e sem ser pelos motivos que provavelmente almejava, mas pagando com a vida. O lugar na sociedade é sempre conferido pelo dinheiro que nos pagam ou o tempo que a sociedade dispende connosco, salvo algumas distorções - e na arte ocorrem muitas, como a sorte, modas, marketing, fama, gostos do público etc. Aquilo que pagam pela arte (e não forçosamente ao artista ou no tempo de vida do mesmo) será o que a sociedade valoriza. Isto não significa que o dinheiro e a aceitação popular seja medida da qualidade da arte, mas pode ser medida da função social dessa arte. E isso não tem mal nenhum. Por exemplo, Dostoiévksi escrevia para pagar dívidas e sobreviver, como tantos e tantos grandes escritores e dramaturgos e músicos e pintores: eram uma espécie de funcionários. Até Miguel Ângelo, Da Vinci ou Bach tinham funções bem modestas, as de entreter e embelezar cortes, igrejas ou os halls de grandes bancos e as casas de grandes magnatas. Depois, claro, olhamos para aquilo e vemos arte, mas isso é connosco. Do ponto de vista dos próprios, há mais "artesão" do que artista. De facto, escrever é ficar quieto a escrever e mais nada. Uns têm a graça divina e outros têm menos, mas precisam todos de escrever da mesma forma como qualquer outro ser humano precisa de trabalhar e picar o ponto (eu tenho de fazer as duas coisas!). Ou seja, para mim é impossível criar boa arte sem descer (ou subir) ao nível de qualquer trabalhador dedicado. É, aliás, a minha maior fraqueza digo-lhe já, porque me habituei demais a ver a escrita como um gozo de recompensa imediata, do que como um trabalho sério, que os outro valorizem e para o qual valha a pena eu esforçar-me.
Eu, muito humildemente no fundo da minha insignificância de aprendiz, assumo que penso nisso todos os dias antes de aprender a escrever e por isso admiro Gogol como se fosse um santo, e por isso tenho um certo preconceito que me impede de levar a sério quem não leva mortalmente a sério o que faz. Mas uma das minhas grandes angústias é não ter, precisamente, um ideal bem sólido e aí é Dostoiévski quem mais me diz pois fez dessa angústia existencial, da luta entre extremos, o tema transversal a toda a obra.
Digo-lhe já o que seria a minha função social ideal: escrever o melhor que posso e como quero e, ao mesmo tempo, distrair pessoas nos transportes públicos a troco de uns euros que me ajudassem a comprar o barco à vela que quero ter (um dufour de 10 metros) para velejar pelo mundo. Nos últimos 2 anos a fazer 3 horas de transportes públicos, e garanto-lhe que não há maior fiel para a qualidade de um livro, para mim, do que uma pessoa ter pena da viagem não durar mais um bocadinho :)
cumprimentos!
Lourenço
Depois de reler o texto do Henrique, já vi que afinal até concordo com ele. Isto é pelo menos a 2ª ou 3ª vez que me acontece aqui. Leio, discordo um bocadinho, escrevo. Depois releio o texto original e parece que fui eu que inventei um texto que não existia. Aqui nos comentários não é grave, mas acredite, isto acontecia-me nos meus exames da licenciatura em matemática e, como deve calcular, os resultados eram frequentemente desatrosos. Demasiada impulsividade tsk tsk :)
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