A INCREDULIDADE DE SÃO TOMÁS
Caravaggio
O velho que pedala dentro dos meus pulmões anda à procura de gatos. Ele não sabe que os gatos são esquivos, traiçoeiros, cínicos. Ele só sabe que dizem dos gatos serem livres, porque geralmente tem-se da liberdade essa ideia: esquivo, traiçoeiro, cínico. Quando me sento a pensar na liberdade com que o homem pedala dentro dos meus pulmões, respiro bem fundo para que os pulmões dilatem, para que fiquem como montanhas. Espero com isso cansar o homem, se possível provocar-lhe um ataque mortal. Ele é persistente e pedala, não possui a noção dos seus limites. Impõe-se, por isso, que lhe provoque um esforço mortal, já que estou farto de ter homens velhos a pedalarem dentro dos meus pulmões. Sei bem que está na moda, sei que as pessoas estendem passadeiras vermelhas aos velhos que pedalam dentro dos seus pulmões, até descobrem conceitos complexos para justificarem tal permissividade. No fundo, têm receio de respirar, temem o desconforto das poeiras, vivem obsessivamente fixados no bafo do reconhecimento. É muito mais fácil reconhecer a respiração de quem tem velhos dentro dos pulmões, porque então o que se reconhece já não é uma respiração nova, é apenas o que há de velho nessa nova respiração. Ela tem um hálito desgastado, mas facilmente reconhecível. Há quem aprecie esses encontros, chamam-lhe processos de identificação. Depois dizem que metem os dedos na ferida, que olham para dentro da chaga, que vêem tudo muito claro. Gabo-lhes a vidência. Eu cá só vejo mortos com discursos desconexos, do género: morria por ti. Como pode alguém que já morreu morrer por alguém? São fantasmas, estão mortos, ainda que se julguem vivos já só têm feridas secas, transpiram aquele odor pestilento das gangrenas. Continuam teimosamente à procura dos gatos, mas lá dentro dos pulmões, com passadeiras estendidas aos velhos, apenas restam lebres.
2 Comments:
Um clima seco ajudaria o velho a pedalar e os gatos a desaparecer.
Eu sei, eu sei. Mas, assim como assim, o mar está perto.
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